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Dificilmente assistiremos no discurso de Lula nesta terça-feira (19), na abertura da 78ª Assembleia Geral da ONU, em Nova York, a uma repetição das gafes ou descalabros nem tão involuntários assim cometidos pelo presidente em assuntos internacionais nas últimas semanas e meses. Defesas escancaradas de ditaduras, como a venezuelana e a cubana, alinhamento à retórica russa em relação à Guerra na Ucrânia, declarações hostis aos Estados Unidos, críticas fora do alvo aos países europeus — tudo isso pode até aparecer no discurso, mas será de forma sutil ou bem calibrada pela linguagem diplomática. Afinal, como em todo discurso na ONU, será um texto lido, não improvisado por Lula, e ainda que contenha o cerne do que ele pensa e pretende nas relações internacionais, terá o tom da tergiversação ou de uma aparente neutralidade.
É de se esperar uma repetição da crítica ao embargo americano a Cuba — como sempre, pelos motivos errados —, ênfase às questões ambientais e de combate à miséria no mundo (temas obrigatórios do bom-mocismo diplomático) e o tradicional balanço das pretensas conquistas de seu governo até agora.
A sensação que fica 20 anos depois do primeiro discurso na ONU é que Lula e seus assessores internacionais não souberam reformular os seus objetivos.
Certamente, Lula tentará usar seu primeiro discurso no ONU desde que voltou ao poder para reabilitar sua imagem externa, depois do impeachment de sua sucessora e do período em que passou na cadeia, impedido de se candidatar, por corrupção e lavagem de dinheiro. O discurso na ONU acrescentará algumas linhas à sua tentativa de reescrever a história. Como primeiro discurso na tribuna da ONU depois das eleições contra Jair Bolsonaro, esse também será o momento perfeito para Lula reforçar a ideia de que seu governo derrotou a tentação autoritária, cristalizada nos atos de 8 de janeiro.
Uma comparação com o discurso que Lula fez na ONU em 2003, no primeiro ano do seu primeiro mandato, será inevitável. O Lula de 2023 continua obstinado em reformar o sistema internacional, em especial com a ampliação do número de membros permanentes do Conselho de Segurança da ONU, com a inclusão do Brasil. A diferença é que, 20 anos atrás, a justificativa para defender essa reforma nos mecanismos multilaterais de segurança global era a Guerra no Iraque e a Guerra ao Terror promovidas pelos Estados Unidos. "As tragédias do Iraque e do Oriente Médio só encontrarão solução num quadro multilateral, em que a ONU tenha um papel central", leu Lula na ocasião.
Como tem feito nos últimos meses, Lula tentará vender uma posição de neutralidade — ao menos no discurso lido.
Atualmente, o exemplo a ser usado por Lula para defender sua velha agenda de reformulação do Conselho de Segurança será, evidentemente, o da Guerra na Ucrânia. Como tem feito nos últimos meses, Lula tentará vender uma posição de neutralidade — ao menos no discurso lido, já que o apoio recente do Brasil à expansão do Brics e à "desdolarização" do comércio mundial sugerem, ao contrário, um alinhamento maior a interesses da China e da Rússia. Curiosamente, ainda que o contexto geopolítico em 2003 fosse outro, no discurso daquele ano Lula fez menção específica à aproximação com esses dois países: "Nas parcerias com a China e com a Rússia, estamos descobrindo novas complementariedades."
A política externa dos dois primeiros mandatos de Lula pautava-se pelo desejo de reformar o sistema internacional para a construção de uma nova ordem multipolar, na qual o Brasil teria uma liderança de destaque junto a outros países em desenvolvimento. Mas se na primeira década do século a ambição da diplomacia lulista já parecia, para muitos críticos, extrapolar as capacidades materiais do Brasil para exercer a tal liderança, hoje, com uma China muito mais fortalecida do que antes, ela é ainda mais irreal.
Para além da questão se o objetivo pode ser alcançado, a pergunta que merece ser feita é se o prêmio almejado (uma cadeira permanente e mudanças nas regras de funcionamento do Conselho de Segurança) trará ganhos para o Brasil que justificam o custo político, talvez até econômico, para alcançá-lo.
Acadêmicos que analisaram a política externa nos oito primeiros anos de governo Lula com mais otimismo avaliam que ele buscava o "reconhecimento de status por meio da liderança moral" (Menezes e Vieira, 2021), sem almejar benefícios materiais no curto ou médio prazo. Ou seja, que o Brasil naquele período se via como uma potência emergente capaz de contribuir para a solução de problemas globais, e que a cooperação e as alianças com os parceiros emergentes serviriam de instrumento para esse fim.
A sensação que fica 20 anos depois do primeiro discurso na ONU, porém, é que Lula e seus assessores internacionais não souberam reformular os seus objetivos em política externa à luz da nova realidade mundial — de forma a buscar o que é de fato o melhor para o Brasil.