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Pode-se imaginar, ao observar a foto de Lula em visita ao chefe da Igreja Católica, que o petista foi pedir perdão ao papa. Perdão pelos crimes de colarinho branco que cometeu e pelos quais foi condenado. Perdão por trair a confiança dos eleitores e por ter indicado uma sucessora que devolveu milhões de brasileiros à condição de miséria e desemprego. Mas como pode pedir perdão alguém que não se arrepende?
Lula, é óbvio, não foi a Roma pedir perdão, mas sim fazer uma jogada de marketing político. Ele foi, segundo afirmou no Twitter, conversar com o papa Francisco sobre "um mundo mais justo e mais fraterno". Do alto dos seus quase dez anos de pena, no mínimo, que ainda tem para cumprir (se as sentenças já dadas forem mantidas pelo STF), o ex-presidiário sente-se com moral para falar no que é justo.
Remorso? Que nada. Dias antes, ele estava nas comemorações dos 40 anos do PT dizendo que o partido não tinha autocrítica nenhuma a fazer.
Durante 580 dias, enquanto seu líder ocupava a carceragem da Polícia Federal em Curitiba, a esquerda brasileira, de maneira quase unânime, abraçou uma única causa: a libertação de Lula. A ideia fixa custou à esquerda uma eleição presidencial: Fernando Haddad se fez fotografar usando uma máscara do chefe, sem pretender esconder que era apenas mais um poste, e Ciro Gomes não convenceu como alternativa capaz de chegar ao segundo turno, entre outras coisas porque se suspeitava que daria indulto a Lula.
O imobilismo da esquerda continuou ao longo de 2019, presa que estava ao papel de se apresentar como vítima de uma injustiça contra o seu líder. Pensava-se que, quando Lula saísse da prisão, PT e legendas adjacentes perderiam a pose de injustiçados e partiriam em busca de uma agenda mais positiva.
Não foi o que aconteceu. A agenda, agora, é provar que Lula é inocente, que o PT não fez nada de errado no poder e que a esquerda só não ocupa mais o Palácio do Planalto por causa de uma grande conspiração das elites (estranhamente amparada por mais da metade dos eleitores brasileiros que votaram contra o PT no pleito presidencial de 2018).
Com Lula livre, a esquerda brasileira majoritária continua atrelada a um projeto pessoal de poder e de reputação histórica. Se era para ser assim, a esquerda estava melhor com Lula preso. Como conseguirá, nessas condições, renovar seus quadros de liderança e escolher um candidato forte para 2022? Como será capaz de limpar seu nome e vencer a resistência de uma boa parcela do eleitorado de não militantes e que continua, com razão, desapontada? O que a esquerda brasileira tem a oferecer além de desculpas esfarrapadas?
Questão global
A esquerda brasileira não é a única que está em crise. A europeia e a americana também vivem seus percalços, em busca de uma nova identidade.
Nos Estados Unidos, as prévias democratas têm sido marcadas pelo avanço da ala mais radical, na figura de Bernie Sanders — para alegria do presidente republicano Donald Trump, que só tem a ganhar eleitoralmente com a polarização. Nas últimas eleições, os democratas perderam em alguns de seus principais bastiões da classe trabalhadora.
Há duas décadas, pelo menos uma dúzia dos países da União Europeia tinha governos de esquerda. Hoje, contam-se nos dedos de uma mão aqueles que podem ser enquadrados na esquerda ou centro-esquerda. E, para ser rigoroso, apenas o de Portugal desfruta de certa estabilidade.
Em artigo publicado no site da London School of Economics, na Inglaterra, o cientista político Jan Rovny, professor da Sciences Po, de Paris, descreve como a esquerda europeia perdeu apoio popular ao distanciar-se da parcela do eleitorado que quer proteção do Estado na economia tanto quanto a defesa de "um certo tradicionalismo cultural".
O que nocauteou a esquerda foi a emergência do transnacionalismo (um conceito que converge com o tal "globalismo", de que tanto fala o chanceler brasileiro Ernesto Araújo). "O transnacionalismo redefine o espaço político ao dissociar progressivismo econômico da abertura sócio-cultural. O transnacionalismo associa cosmopolitismo com abertura econômica, de um lado, e tradicionalismo nacional com protecionismo econômico, do outro", escreveu Rovny.
Ou seja, a esquerda europeia estava com um pé em cada canoa, a do cosmopolitismo e a do protecionismo — e a correnteza levava cada uma para um lado. O resultado foi um belo tombo n'água.
O populismo de direita em ascensão na Europa beneficiou-se ao colocar proteção cultural e econômica em um único pacote. Mas no Brasil, curiosamente, é diferente. Aqui, o bolsonarismo está ancorado no tradicionalismo cultural e, mesmo contra os instintos do presidente, rendeu-se ao liberalismo na política econômica. Essa opção, como mostrou o apoio popular resignado à reforma da previdência, estava de acordo com o zeitgeist brasileiro atual.
Lula, porém, aposta no sentido contrário. Ao sair da prisão, em novembro passado, ele disse que se tornou mais radical. Nada do Lulinha paz e amor que fez as pazes com o mercado para ser eleito pela primeira vez, em 2002. E, como ficou claro nos discursos da comemoração dos 40 anos do PT, a aposta do partido a partir de agora é mesmo se posicionar contra a "perversão do liberalismo". Nada muito original como programa político.
"Lula livre", quem diria, tinha mais apelo.