Ouça este conteúdo
Em maio de 2021, quando a vacinação contra covid-19 ainda era incipiente, com doses insuficientes para toda a população brasileira, foi realizado em Botucatu, no interior de São Paulo, um ambicioso projeto para verificar que efeito os novos imunizantes teriam quando toda, ou quase toda, a população brasileira estivesse protegida. Ou seja, para descobrir qual o nível de proteção que as vacinas dariam, quantas mortes e casos graves evitariam, em uma situação de vida real, não mais em pesquisas controladas com voluntários como as que foram feitas para a aprovação dos imunizantes. A vacina testada foi a Covishield (ChAdOx1 nCoV-19), desenvolvida pela Universidade de Oxford e pela farmacêutica AstraZeneca. Uma parte do resultado desse estudo já está pronta para publicação na revista científica Vaccine, da Sociedade Japonesa de Vacinologia. Trata-se do estudo de segurança da vacina da AstraZeneca.
Botucatu é uma cidade com 142.000 habitantes e um hospital universitário de primeira linha vinculado à Universidade Estadual Paulista (Unesp). Os pesquisadores da instituição, liderados pelo infectologista Carlos Magno Fortaleza, fizeram uma parceria com a prefeitura do município, que conseguiu junto ao ministro da Saúde, Marcelo Queiroga, a doação de todas as doses necessárias para a vacinação em massa da população da cidade, já que a Covishield era envasada (e hoje também produzida) pela Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), um entidade do governo federal.
O público-alvo da vacinação em massa era toda a população entre 18 e 60 anos. A primeira dose foi aplicada em 77.683 pessoas nessa faixa etária, o que representa 84,2% do total da cidade, das quais 65.450 foram imunizadas em um único dia, 16 de maio. A segunda dose foi dada a 74.051 pessoas, ou 80,2% do total de adultos, das quais 60.333 também em apenas um dia, 8 de agosto. Ou seja, a adesão da população ao mutirão de vacinação foi altíssima, o que contribuiu para a qualidade do estudo sobre a segurança da vacina.
Para analisar a segurança da vacina, ou seja, seus possíveis efeitos adversos, os pesquisadores compararam os registros de pessoas que procuraram o pronto-socorro ou foram hospitalizadas nas seis semanas anteriores e nas seis semanas posteriores à vacinação. O objetivo era saber se a ida ao hospital aumentou após a aplicação das doses e se os casos registrados estavam relacionados a efeitos adversos da vacina, com atenção especial para aqueles potencialmente mais graves.
Os dados demonstraram que a procura pelo hospital vinha crescendo desde antes da aplicação da primeira dose (mesmo desconsiderando os diagnósticos de covid-19), com um aumento mais significativo do pronto-socorro logo após a segunda dose. Esse aumento ocorreu em parte porque a população passou a ter menos medo de contrair covid e se sentiu segura para buscar atendimento médico para queixas diversas, sem relação com a vacina, e em parte por causa de reações leves da injeção, como dores musculares e no braço.
Não houve aumento de casos de condições mais graves que poderiam ser associados à vacina, como miocardite, pericardite e trombose. Os casos de doenças neurológicas que apareceram estavam relacionados a pacientes com condições preexistentes. O número de pacientes com paralisia de Bell (paralisia de um dos lados do rosto) registrado após a vacinação estava dentro da incidência normal da doença numa população com o tamanho da de Botucatu. Além disso, ao se analisar individualmente cada caso, não se encontrou uma relação direta com a vacina. Os casos de alergia com causa desconhecida (e que, portanto, poderiam ser hipoteticamente relacionados à vacinação) tampouco foram significativos.
A conclusão dos autores do estudo, que incluiu pesquisadores da Unesp-Botucatu, de Oxford (Reino Unido), da Bélgica e da Coreia do Sul, é a de que a vacinação quase simultânea de mais de 77.000 adultos com o imunizante de Oxford/Astrazeneca/Fiocruz não ensejou preocupação com reações adversas graves. A vacina provou-se segura.