"A reação das pessoas é a de estarem em um barco afundando e todas se matando para pegar o último bote superlotado. Nunca vi algo assim". É dessa maneira que um médico de hospital público em São Paulo descreve a briga que se instalou entre os profissionais de saúde para serem vacinados com as doses do primeiro lote da CoronaVac, que foi distribuído na semana passada no estado e em todo o país. Com as incertezas acerca do fornecimento dos insumos chineses necessários para produzir tanto a CoronaVac como o imunizante da Universidade de Oxford e do laboratório Astrazeneca, a fila da vacinação ficou parecendo a fila para o último bote salva-vidas de um Titanic prestes a afundar. Um caos.
Em outro hospital, com um número de funcionários três vezes maior do que o de doses de vacinas recebidas, enfermeiras que estão na linha de frente da covid-19 foram preteridas em prol de médicos que estão trabalhando remotamente, em casa, ou outros que só aparecem para bater o ponto.
Os episódios de profissionais menos expostos ao vírus tentando furar a fila da vacinação refletem a conhecida cultura da camaradagem e do jeitinho brasileiro, de tirar vantagem sempre que possível. Nesse caso, agravada pelo desespero, pelo cenário de "salva-se quem puder", pois a segunda onda da pandemia do novo coronavírus abateu-se com tudo sobre o Brasil e, em muitos aspectos, já é pior do que a primeira.
No auge da primeira onda de contaminação, no final de julho do ano passado, o Brasil registrava uma média semanal de 46.000 novos casos diários de pessoas com covid-19. Agora, em janeiro, o pico chegou a 55.000 novos casos diários confirmados. Na primeira onda, o dia com o maior número de novos óbitos por covid-19 foi 29 de julho, quando se registraram 1.590 mortes pela doença. No último dia 7 de janeiro, chegou-se muito perto dessa marca triste, com 1.520 óbitos novos.
A maré de esperança que se formou com o início da vacinação corre o risco de se transformar rapidamente em uma ressaca de decepção, por duas razões: a primeira é o risco de a campanha de imunização ser interrompida por falta de doses (enquanto a China não liberar os insumos, o Instituto Butantan e a Fiocruz não conseguirão seguir com a produção); a segunda é o fato de que, com uma proporção ínfima de aplicações, a vacinação terá efeito mínimo sobre a segunda onda da pandemia.
Com ampla experiência e estrutura de imunização, testadas e aprovadas em outros anos de campanhas de vacinação contra outras doenças, o Brasil tinha tudo para ser um exemplo para o mundo na proteção de sua população contra a covid-19.
Basta ver os números da última semana. O Brasil começou a vacinação contra covid-19 um dia depois da Índia, de onde o governo federal importou — a duras penas — 2 milhões de doses da vacina de Oxford. Já na sexta-feira (22), o Brasil ultrapassou a Índia em número de doses aplicadas por 100 habitantes. Neste sábado (23), registrávamos a marca de 0,25% da população vacinada, contra 0,11% dos indianos.
Em ambos os casos, a proporção de vacinados é ínfima. Segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS), pelo menos 70% da população precisa estar vacinada para reduzir a circulação do vírus.
Nenhum país atingiu essa marca, ainda. Israel, que está mais avançado, imunizou 40% da população. Lá, a taxa de contágio pelo novo coronavírus caiu, mas as autoridades israelenses atribuem isso não apenas à vacina, mas também ao lockdown que foi imposto simultaneamente.
No Brasil, o contexto político é de aversão às medidas de restrição de atividades e isolamento social. Por outro lado, parece haver uma oportunidade para um consenso em torno da necessidade de priorizar a vacinação em massa.
Segundo pesquisa Datafolha, quase oito em cada dez brasileiros pretendem entrar na fila da vacinação. O governo de Jair Bolsonaro deveria abraçar essa causa com vigor e demonstrar todo o empenho para resolver o problema da falta de insumos para a produção de vacinas — que não é só um problema nosso, mas global.
Uma campanha de vacinação em massa bem-sucedida não é apenas necessária para estancar o desastre na saúde pública que já matou 1 em cada 1.000 brasileiros. É também a melhor opção para a sobrevivência política de Jair Bolsonaro. Comandante do Titanic, ele viu o iceberg e nada fez para desviar. Agora lhe resta garantir botes para o maior número possível de brasileiros.
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