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Houve um tempo, nada distante, quando no Brasil ainda tínhamos o PT no poder, em que o Chile servia de modelo para muitos brasileiros de como direita e esquerda podiam discordar em muitos pontos, mas concordar no essencial quanto ao compromisso com a democracia e com uma fórmula básica para a estabilidade econômica. Era o chamado "consenso chileno".
Em abril de 2006, fui recebido pela então presidente Michelle Bachelet, no Palácio La Moneda, em Santiago, para uma entrevista. Recém-empossada, ela definiu assim o sucesso chileno: "O Chile avançou muito graças à grande disciplina fiscal, à estabilidade econômica e política e à coesão social muito forte. O crescimento também se deve aos empresários que foram capazes de identificar oportunidades para fazer negócios dentro e fora do país."
Bachelet também chamou atenção para o fato de que a estabilidade política e econômica atraía investimentos, pois fazia do Chile um país de baixo risco, e elogiou o modelo voltado para exportação. Eram frases que poderiam ter saído da boca de um de seus adversários políticos na centro-direita.
O sistema político chileno, moldado pelo general Augusto Pinochet no apagar das luzes da sua ditadura para garantir um equilíbrio no congresso entre esquerda e direita, exigiu das coalizões que governaram o país desde então uma constante busca por compromissos e consensos. Foi assim com a socialista Bachelet e também com o seu sucessor, Sebastián Piñera, de direita, com quem intercalou mandatos presidenciais nos anos que se seguiram.
O segundo governo Piñera encerra-se no início do ano que vem, quando toma posse o vencedor do segundo turno da eleição realizada neste domingo (19). Encerra-se, também, em definitivo, o consenso chileno e seu principal subproduto: a moderação política. Ele já vinha definhando desde 2015, durante o segundo mandato de Bachelet, quando o Senado aprovou o fim do sistema eleitoral binominal para a escolha de deputados e senadores. Com isso, o equilíbrio entre coalizões de centro-esquerda e de centro-direita se desfez, levando à pulverização da representação política e à multiplicação de partidos.
A mudança também deu força a lideranças mais radicais e personalistas à esquerda e à direita, ao discurso antipolítica e anti-sistema e a candidatos independentes.
O segundo golpe no consenso chileno foram os grandes protestos ocorridos em 2019, que começaram como uma revolta contra o aumento no preço das passagens no transporte público e, a exemplo do que ocorreu nas jornadas de junho de 2013 no Brasil, ganharam fôlego com novas pautas e reivindicações. No caso chileno, evoluíram para a exigência de se aprovar uma nova constituição, em substituição àquela escrita no governo Pinochet e que vigora até hoje.
A Assembleia Constituinte chilena começou seus trabalhos este ano e tem até meados de 2022 para promulgar uma nova carta magna para o país.
Os protestos de 2019 representaram uma radicalização da esquerda chilena, amparada em uma percepção generalizada de que o consenso chileno fracassou em seu pilar político, em garantir representatividade aos cidadãos, e em seu pilar econômico, em reduzir a desigualdade social (que ainda assim é bem menor do que a brasileira).
A eleição deste ano mostra que o consenso chileno foi substituído pela extrema polarização política. Os programas dos dois candidatos que foram para o segundo turno, o direitista José Antonio Kast e o esquerdista Gabriel Boric, não têm praticamente nada em comum. Além disso, os candidatos que representavam os grupos de centro-esquerda e de centro-direita, que dominaram a política nas últimas três décadas, não conseguiram chegar sequer em terceiro lugar no primeiro turno, perdendo o posto para um candidato populista que fez campanha do exílio, sem pisar no país, por causa do risco de ser preso por não pagar pensão alimentícia.
A polarização política no Chile, assim como ocorreu no Brasil desde 2018, provavelmente não vai terminar com a eleição. Apesar de ambos os candidatos terem moderado seus discursos no segundo turno para atrair votos do centro, não há garantia de que vão governar para todos os chilenos em vez de procurar agradar apenas suas bases eleitorais originais.
Nós, brasileiros, devemos olhar para o desenrolar dos eventos políticos no Chile no próximo ano, com a posse do novo presidente, como um exemplo do que pode ocorrer por aqui.
Veremos uma radicalização do vencedor ao assumir o governo, apelando fortemente para suas bases e ignorando outros setores da sociedade, ou o cumprimento da promessa de governar para todos, ainda que mantendo-se fiel à agenda de campanha?
A moderação de discurso no segundo turno da campanha eleitoral vai, de fato, se refletir em um compromisso para o diálogo e para a busca de consenso durante o mandato?
O novo presidente chileno também tem muito a aprender com o exemplo brasileiro, se souber ler as evidências de que governar para um nicho e desprezar as vozes discordantes é o caminho mais curto para empurrar os adversários de volta ao poder.