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Ultimamente, dizer que o presidente Jair Bolsonaro se aproxima de uma política desenvolvimentista ofende mais uma parte da esquerda brasileira, principalmente aquela ligada ao trabalhismo e ao ex-candidato presidencial Ciro Gomes, do que os liberais econômicos bolsonaristas que nas últimas semanas têm dado cavalos-de-pau argumentativos para se manterem fieis ao governo. Os trabalhistas se ofendem porque se imaginam donos de um projeto nacional-desenvolvimentista para o país e, obviamente, não querem ver sua ideologia associada a um presidente que abominam. Mas o questionamento é pertinente: pode-se mesmo dizer que Bolsonaro é desenvolvimentista?
Em linhas bem gerais, o desenvolvimentismo é a visão de que países com economias menos avançadas devem recuperar o atraso por meio de forte incentivo do Estado. Ao longo da maior parte da sua carreira política, Bolsonaro alinhou-se com ideias estatistas e enalteceu as políticas econômicas do período militar, em que predominou o desenvolvimentismo e o intervencionismo.
Apesar de o próprio Bolsonaro admitir que carece de conhecimentos mais profundos sobre economia, não há dúvida de que seu DNA político tem o gene desenvolvimentista. Mas isso está longe de significar que seu governo possa ser qualificado dessa forma.
É muito difícil refutar que Bolsonaro se elegeu com uma plataforma de liberalismo econômico e que, por um bom tempo, seu ministro da Economia, Paulo Guedes, empenhou-se em obedecer a medidas de controle fiscal e a buscar reformas liberalizantes. Mas também não é nenhum segredo que, nos últimos meses, o governo começou a se dividir claramente em uma ala desenvolvimentista, associada aos ministros militares, e uma ala liberal, concentrada em Guedes e, em menor grau, em Tereza Cristina, da Agricultura.
A marca da ala desenvolvimentista foi a elaboração do plano Pró-Brasil, de investimento em obras públicas, comandada pelo ministro da Casa Civil, general Walter Braga Netto. Na própria reunião ministerial em que o Pró-Brasil foi apresentado ao gabinete, Guedes atacou o "caminho desenvolvimentista". Posteriormente, fez críticas a uma corrente do governo que ele chamou de "fura-teto" de gastos.
Se não há dúvidas de que existe essa cisão no governo, também é verdade que Bolsonaro ainda não optou de maneira incontestável por um modelo ou por outro. A agenda liberal de Guedes está malparada e os gastos públicos com as medidas emergenciais ligadas à pandemia do novo coronavírus dispararam. A reforma tributária pode elevar os impostos, em vez de diminuí-los, e a administrativa mal arranha a superfície dos privilégios do funcionalismo público.
Por outro lado, o Pró-Brasil ainda engatinha e a ideia de reformulação e ampliação dos programas de distribuição de renda, apesar de apontarem para uma elevação dos gastos públicos, não é o que se pode chamar de política desenvolvimentista.
O que, nos últimos dias, trouxe reminiscências intervencionistas foi a cobrança governamental em cima do setor privado e do agronegócio pelo aumento no preço dos alimentos. A alta se explica por uma série de fatores externos e internos, alguns deles relacionados à pandemia, mas o governo caiu na tentação de buscar uma bode expiatório no setor produtivo.
Controle de preços era um dos pilares da política de substituição de importações, historicamente associada ao desenvolvimentismo, que descarrilhou na crise fiscal dos anos 80 na América Latina. Os outros eram controle de importações, taxa de câmbio supervalorizada e estatismo. O governo ainda está longe de adotar o pacote completo, mas é justo que os primeiros sinais sirvam de alerta.
O que se tem, por enquanto, é um governo que quase na metade do mandato ainda não assumiu uma identidade econômica consistente. Enquanto afaga as alas antagônicas de seu gabinete, Bolsonaro dá sinais de que tende a fincar o pé com mais força naquela que trouxer dividendos políticos mais evidentes no curto e no médio prazo.
Desenvolvimentismo ou Consenso de Washington? Por enquanto, nem um, nem outro. O jogo ainda está sendo jogado.