A cena não deixa de ser bizarra. Karim Khan, o procurador do Tribunal Penal Internacional, posa ao lado do ditador Nicolás Maduro no Palácio de Miraflores, em Caracas, nas Venezuela. Sem legenda, a cena poderia passar a impressão de que ambos estão em uma cerimônia de condecoração ou de uma homenagem, com a entrega de diplomas ou honrarias. Nas realidade, o que se vê é a assinatura de um memorando que marca o início da investigação formal, por parte do procurador, de crimes contra humanidade cometidos pelo Estado venezuelano desde 2017. Ainda não há suspeitos formais desses crimes. O que se investigará é a cadeia de comando que levará aos nomes de futuros denunciados. O documento que Maduro tem em mãos poderá levá-lo, algum dia, ao banco dos réus do Tribunal em Haia, na Holanda.
O caso está em análise preliminar em Haia desde fevereiro de 2018. Em investigação está a repressão violenta aos protestos contra o governo em abril de 2017, seguida de prisões de milhares de opositores e de relatos de abusos e torturas nas masmorras do regime chavista.
Entre os detidos após os protestos estava o general Raúl Baduel, ex-ministro da Defesa de Hugo Chávez que rompeu com o governo em 2007. Era sua segunda temporada como preso político. Assim como outros prisioneiros, Baduel foi colocado em celas solitárias com iluminação 24 horas, ar gelado e pouca comida — uma espécie de tortura contemporânea. No lugar do pau de arara e dos choques elétricos, como se praticava na ditadura militar brasileira nos anos 70, entraram a privação do sono, o desconforto físico e o sofrimento psicológico por longos períodos.
Baduel morreu no mês passado sob a tutela do Estado, supostamente por complicações da covid-19. Seus filhos dizem que ele não estava contaminado e pedem uma investigação independente sobre as causas de sua morte.
O caso de Baduel deverá ser um dentre centenas ocorridos na Venezuela a serem investigados pelo procurador Karim Khan.
Há uma lição importante na abertura dessa investigação para governantes latino-americanos que possuem projetos ditatoriais: Haia está disposta a abrir o leque das violações de direitos humanos que pode vir a julgar.
A maioria dos crimes investigados ou que chegam a ser julgados na corte estão relacionados a conflitos armados. Crimes cometidos por ditaduras na repressão a opositores são exceções nas investigações ou processos abertos em Haia.
Das quinze investigações em andamento atualmente, treze estão ligadas a crimes cometidos no contexto de conflitos armados. Apenas duas, referentes aos abusos no combate ao narcotráfico nas Filipinas e à perseguição de minorias em Bangladesh/Mianmar, não se encaixam nesse quesito.
O perfil das investigações, porém, está começando a mudar. Dos seis casos em análise preliminar na corte, apenas dois envolvem países em situações de guerra (Nigéria e Ucrânia). Os outros dizem respeito a contextos como o da Bolívia, em que o grupo político Movimento ao Socialismo foi acusado de promover barricadas para impedir a população de obter ajuda médica durante a pandemia de covid-19, com o intuito de derrubar o governo, ou o da Guiné, na África, onde as forças de segurança mataram 150 pessoas durante um protesto pacífico em um estádio esportivo em 2009.
Há também o caso "Venezuela II", uma denúncia feita pelo próprio governo de Nicolás Maduro contra os Estados Unidos por supostas "medidas coercitivas ilegais" conduzidas em território venezuelano. Trata-se, obviamente, de uma tentativa de fazer frente ao caso "Venezuela I", que agora adquiriu o status formal de investigação contra o Estado venezuelano.
A abertura da investigação da repressão estatal na Venezuela mostra a governantes com projetos autoritários de todo o mundo (mas especialmente aos da América Latina, que nunca precisaram acertar suas contas com o Direito Humanitário Internacional ou com o Estatuto de Roma), que violência política, repressão a protestos, tortura e outras formas de ataque à população civil podem render, no futuro, ordens de prisão e condenações aos seus governantes.
Além de o carimbo de párias globais.
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