Sessão de julgamento no STF em novembro de 2019| Foto: Fabio Rodrigues Pozzebom/Agência Brasil
Ouça este conteúdo

Quando uma constituição de um país é interpretada de acordo com interesses circunstanciais dos juízes da corte suprema ou de pessoas específicas que eles querem favorecer, precedentes perigosos ou não intencionais podem se abrir.

CARREGANDO :)

Peguemos um exemplo da Suprema Corte dos Estados Unidos, guardiã da constituição mais resistente do mundo. O caso é o In re Neagle, julgado em 1890, que modificou definitivamente o equilíbrio de forças da federação americana e lançou as bases para que os presidentes do país passassem a exercer poderes extraordinários em questões de política externa.

Quando se analisa o legado do In re Neagle, pode-se imaginar que o julgamento se referia a uma disputa sobre um tema de grande relevo entre estados ou sobre algum tratado internacional.

Publicidade

Nada disso. Os juízes da Suprema Corte estavam decidindo se podiam ter guarda-costas nomeados pelo presidente. Um julgamento de interesse pessoal dos próprios juízes, portanto, no médio e no longo prazo mudou os rumos da política internacional.

Vale a pena conhecer a história desde o começo, pois envolve amor, traição, assassinato e uma interpretação criativa da constituição de fazer inveja aos ministros do nosso Supremo Tribunal Federal (STF).

A saga começa nos anos 1870, quando uma mulher do estado da Califórnia chamada Sarah Althea Hill começou um relacionamento com um rico senador do estado de Nevada, William Sharon. Eles se separaram alguns anos depois e iniciaram uma disputa na Justiça em 1883. Hill dizia que tinham sido casados, enquanto Sharon afirmava que a certidão de matrimônio que sua ex apresentava era falsa. Sharon morreu antes de terminar o processo, mas seus herdeiros continuaram contestando Hill na Justiça.

O advogado de Hill chamava-se David Terry, um ex-juiz do Supremo Tribunal da Califórnia. Stephen Field, juiz da Suprema Corte dos Estados Unidos, comandou algumas audiências do caso Hill (naquela época, os integrantes da corte no nível federal atuavam também em tribunais no nível estadual).

Terry e Field eram velhos conhecidos. Field havia sido juiz assistente na corte da Califórnia quando Terry era presidente desse tribunal. (Detalhe: por essa época, em um duelo, Terry matou um senador estadual que era, também, um amigo em comum que ele tinha com Field. Esse episódio mostra o espírito intempestivo e brigão de Terry.)

Publicidade

No curso do processo, Terry se apaixonou e, posteriormente, se casou com sua cliente, Sarah Hill — que, aliás, também era intempestiva e brigona e tinha o hábito de ameaçar testemunhas com uma arma dentro do tribunal.

Em uma dessas ocasiões, em 1888, o juiz Field, que comandava a audiência, mandou retirar Hill do recinto. Terry tentou impedir que isso acontecesse desferindo socos contra o segurança. Ele chegou a puxar uma faca, mas foi contido.

Field mandou prender os dois: seu ex-colega de tribunal, David Terry, e Sarah Hill. O casal cumpriu uma curta sentença na cadeia e passou a propagandear sua intenção de se vingar de Field.

Devido às ameaças de morte, o presidente americano Benjamin Harrison mandou seu procurador-geral designar um guarda-costas para o juiz Field. O nome desse segurança era David Neagle.

Em 1889, Field viajava de trem entre São Francisco e Los Angeles quando o casal Terry entrou no vagão restaurante onde ele tomava café da manhã. Terry partiu para cima de Field e começou a esmurrá-lo. Neagle puxou uma arma e ordenou que ele parasse. Terry fez um gesto de reação e Neagle matou-o com dois tiros.

Publicidade

O guarda-costas foi preso por assassinato (Field também, mas conseguiu um habeas corpus em seguida). Finalmente, Neagle obteve um habeas corpus, mas as autoridades da Califórnia recorreram à corte suprema dos Estados Unidos, alegando que o crime era de jurisdição estadual.

A questão a ser decidida no caso In re Neagle era se o estado da Califórnia era obrigado a obedecer a uma liminar federal apesar de não existir lei nacional que concedia ao procurador-geral dos Estados Unidos o poder de designar guarda-costas para os juízes da Suprema Corte. Uma questão, portanto, que os próprios juízes da corte suprema deveriam responder.

Toda essa história de paixão arrebatadora, amizades rompidas e final trágico descrita acima é importante para atestar as circunstâncias conflituosas em que os juízes da Suprema Corte — da qual um dos integrantes era Stephen Field, cuja vida foi salva pelo segurança Neagle — tomaram a seguinte decisão: sim, o Poder Executivo tinha a prerrogativa de designar guarda-costas para os juízes da Suprema Corte. Assim foi decidido por 6 votos a 2.

Ocorre que, para tomar essa decisão favorável a eles próprios e ao guarda-costas de um deles, os juízes precisaram encontrar na constituição uma lacuna para embasar a justificativa. Com isso, esgarçaram os limites do poder presidencial definidos pela carta americana.

In re Neagle teve como efeito não apenas o enfraquecimento da autonomia dos estados que compõem a federação americana, mas também criou o entendimento de que "o presidente pode 'inferir' poderes da constituição", como escreve Harold Krent no artigo O Legado de In re Neagle.

Publicidade

Walter LaFeber, professor de história da Universidade Cornell, nos Estados Unidos, em seu artigo A Constituição e a Política Externa Americana: Uma Interpretação, aponta o impacto do caso In re Neagle para além das fronteiras americanas. Ele destaca o fato de que, em suas argumentações, os juízes afirmaram que a função presidencial "não está limitada a executar tratados e atos do congresso". Também se estende ao dever de garantir a segurança da nação com poderes inerentes que emanam da carta constitucional.

Segundo LaFeber, esse foi o primeiro elo da cadeia de decisões que consolidaram a compreensão de que o poder do presidente para agir livremente no campo internacional não obedece às mesmas restrições constitucionais existentes no campo doméstico.

A noção dos Estados Unidos como "polícia do mundo" é um dos desdobramentos desse entendimento.

Quando um presidente americano manda bombardear um alvo em um país com o qual os Estados Unidos não estão em guerra ou adota medidas para derrubar um governo estrangeiro, tudo isso sem pedir autorização do Congresso, por exemplo, ele está, em última instância, se valendo de um precedente que começou a ser aberto em 1890, quando os juízes da Suprema Corte procuraram nas entrelinhas da constituição uma justificativa para terem guarda-costas designados pelo Poder Executivo.

O que essa história pode ensinar ao Brasil?

Publicidade

Os ministros do Supremo Tribunal Federal (STF) julgaram inconstitucional a reeleição dos presidentes da Câmara dos Deputados e do Senado. O texto da Constituição, no parágrafo 4º do artigo 57, veda com clareza a "recondução para o mesmo cargo na eleição imediatamente subsequente" numa mesma legislatura para a mesa diretora das casas.

Apesar disso, com muita criatividade interpretativa, cinco ministros votaram a favor da reeleição de Davi Alcolumbre (DEM-AP), enquanto quatro votaram pela permissão para Rodrigo Maia (DEM-RJ) buscar um novo mandato na presidência da Câmara dos Deputados.

Os impactos duradouros de um decisão como essa, caso se confirmasse com o voto dos outros integrantes da nossa corte suprema, poderiam extrapolar o mérito do julgamento.

Foi por pouco que isso não aconteceu: o resultado do julgamento foi 6 a 5 contra a reeleição de Alcolumbre e 7 a 4 contra essa possibilidade para Maia.

Ao contrário do exemplo americano, no caso brasileiro não havia sequer o que ler nas entrelinhas. A Constituição é clara ao vetar a possibilidade de reeleição para a presidência da Câmara e do Senado na mesma legislatura.

Publicidade

As consequências de transformar em letra morta o que diz a lei máxima de um país são imprevisíveis.