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Um assessor do presidente da Ucrânia, Volodymyr Zelensky, classificou a luta atual por Kharkiv, a segunda maior cidade do país, como a "Stalingrado do século XXI", em referência à grande batalha pela cidade russa entre as forças do nazista Adolf Hitler e do soviético Josef Stalin entre 1942 e 1943, durante a II Guerra Mundial.
De fato, a resistência soviética em Stalingrado foi um momento definidor da II Guerra, a partir do qual a Alemanha começou a ser derrotada na Frente Oriental. Hitler não aceitou as sugestões de seus comandantes militares de recuar de Stalingrado quando a coisa ficou feia.
Ele havia apostado muitas fichas na cidade. Quando ficou claro que perderia Stalingrado (hoje, Volgogrado), Hitler promoveu o general responsável pela batalha, Friedrich Paulus, como uma senha para que ele se suicidasse.
Mas Paulus, já desiludido com o Führer, preferiu se render. Dos 91.000 soldados sob seu comando que se tornaram prisioneiros dos soviéticos, metade morreu de fome ou falta de assistência médica nos meses que se seguiram. Uma filmagem russa da rendição de Paulus foi projetada em Tóquio para uma audiência de 150 generais japoneses, que, assim como Hitler, ficaram chocados que o general alemão tenha preferido se a render a se suicidar.
O historiador britânico Antony Beevor escreveu em seu monumental A Segunda Guerra Mundial (Editora Record) que os japoneses compreenderam naquele instante que seu aliado Hitler perderia a guerra.
Mas Kharkiv (também grafada "Kharkov" ou na forma aportuguesada, Carcóvia) tem sua própria batalha da II Guerra para servir de parâmetro para a atual.
Depois de derrotar os alemães em Stalingrado, Stalin empolgou-se e quis aproveitar para libertar a região do Donbas e a cidade de Kharkiv, no leste da Ucrânia — então pertencente à União Soviética.
O turrão Hitler, assim como fez em Stalingrado, não queria saber de bater em retirada e insistiu em manter o controle de Kharkiv. Mas, depois do fracasso em Stalingrado, os chefes militares alemães estavam mais propensos a desobedecer às ordens de Hitler.
Paul Hausser, comandante do 2º Corpo Panzer, de blindados do exército alemão, recuou. O marechal de campo Erich von Manstein, que desde cedo defendera a necessidade de recuar em Stalingrado, também retirou seu 1º Exército Panzer mais para o sul.
Hitler, furioso, voou até a Ucrânia, na cidade de Zaporozhye (atualmente local de refúgio dos feridos do cerco russo a Mariupol, que vem sendo intensamente bombardeada por ordens de Vladimir Putin), para tirar satisfações de Manstein. Zaporozhye era onde estava baseada o comando da Wehrmacht na região.
O ditador acabou concordando com o plano de Manstein. Com o recuo das forças alemãs, o Exército Vermelho, sem encontrar resistência em Kharkiv, formou uma grande coluna militar, marchando para oeste — fragilizando-se, porém, pela exigência de uma extensa linha de suprimentos.
Manstein reuniu as forças alemãs que haviam batido em retirada e atacou a coluna soviética em dois flancos, por baixo. Sem combustível, muitos soldados russos bateram em retirada a pé.
Em meados de março de 1943, há exatos 79 anos, os alemães retomaram Kharkiv, em uma batalha absurdamente sangrenta para ambos os lados. Os prisioneiros russos que tiveram a sorte de serem poupados foram obrigados a trabalhar no sepultamento dos mortos. Os outros foram simplesmente fuzilados.
Hitler tinha a esperança de, a partir da reconquista de Kharkiv, preparar-se para uma nova ofensiva de verão contra a União Soviética. Mas as suas forças na Frente Oriental estavam muito enfraquecidas.
Em julho daquele ano, os alemães avançaram sobre Kursk, cidade russa a 220 quilômetros de Kharkiv. A derrota alemã na Batalha de Kursk marcou o fim da aventura nazista na Frente Oriental. Em agosto, o Exército Vermelho retomou Kharkiv.
Em setembro de 1943, Hitler viajou pela última vez a Zaporozhye, na Ucrânia. Os alemães ainda tentaram manter terreno defendendo suas posições na margem oeste do rio Dnieper, mas os russos conseguiram cruzá-lo e marcharam sobre Kiev, tomando a capital ucraniana das mãos dos alemães em novembro.
Não há paralelo ideológico a fazer entre os lados do conflito de 1943 e os que se enfrentam na atual guerra na Ucrânia. A União Soviética não existe mais e, ademais, naquela ocasião eram os russos que estavam defendendo seu território. Apesar da narrativa vendida por Putin, o governo ucraniano que ele procura derrubar não é um equivalente dos colaboracionistas locais que abriram as portas do país para a Alemanha nazista, na esperança de se livrar do jugo soviético. E, dessa vez, a Rússia é a agressora e os ucranianos é que estão se defendendo.
O que interessa aqui é observar pontos de contato entre as batalhas de 1943 e a atual em aspectos de cunho estratégico-militar.
O primeiro é o perigo de uma liderança política agarrar-se teimosamente a um objetivo e recusar-se a recuar quando uma derrota é iminente.
Hitler teimou em Stalingrado e isso custou às suas forças militares tanto que nem mesmo o acerto que permitiu a retomada de Kharkiv foram suficientes para reverter a derrota na Frente Oriental.
Putin parece estar tentando não repetir o mesmo erro. É o que sugere o anúncio, feito na sexta-feira (25) por seu ministro da Defesa, de que o objetivo da primeira fase da invasão foi atingida (apesar de Kiev não ter sido tomada, meta óbvia pela movimentação das tropas russas) e que agora Moscou vai se concentrar em consolidar o domínio da região separatista de Donbass e do território que liga a Rússia à Península da Crimeia (o que inclui Mariupol).
O segundo é que a doutrina militar russa pressupõe sempre muitas baixas — e isso não serve de parâmetro para derrota ou vitória. O Exército Vermelho teve 1,1 milhão de baixas na Batalha de Stalingrado, entre mortos, feridos e capturados. Os alemães e aliados húngaros (entre outros), tiveram 500.000 em baixas.
Na atual guerra na Ucrânia, a Rússia também está enfrentando muitas baixas. Estima-se que até 20.000 soldados russos já morreram na empreitada — e isso não é mera propaganda de guerra ucraniana ou ocidental, já que informações vazadas do Kremlin para tablóides pró-Putin parecem confirmar esses números.
O terceiro aspecto é o descuido com as linhas de suprimento. Assim como ocorreu antes de os soviéticos perderem Kharkiv em março de 1943, o exército russo também agora tem tido dificuldade para abastecer suas linhas de combate com munição, alimentação e combustível. A ponto de extensas colunas de veículos e tanques terem ficado paradas durante dias sem conseguir chegar a Kiev.
O quarto aspecto — e aí, sim, vemos o paralelo com Stalingrado de 1943 — é a impressionante capacidade de resistência de uma cidade como Kharkiv, que fica a poucas dezenas de quilômetros da fronteira russa, diante de uma força militar notoriamente superior.
Kharkiv foi atacada pelos russos já no primeiro dia dessa guerra, em 24 de fevereiro, e até hoje seu controle não está garantido. Nos últimos dias, inclusive, as forças ucranianas conseguiram retomar posições estratégicas ao redor da cidade.
O tempo dirá se Kharkiv é, de fato, a "Stalingrado do século XXI".