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Diogo Schelp

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Internacional

Lula escapa de viagem à Rússia e de foto com Putin, mas não de Brics desvirtuado

Putin
Lula e Putin em 2004, com Celso Amorim entre os dois, durante a visita do presidente russo ao Brasil, no primeiro mandato presidencial do político brasileiro. Não é dessa vez que a foto vai ser repetida (Foto: EFE/Jefferson Rudy)

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O presidente Lula estava com viagem marcada para Kasan, na Rússia, nesse domingo (20), para participar esta semana do encontro de cúpula do Brics, grupo de países emergentes encabeçados por Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul. Precisou cancelar depois de sofrer uma queda no banheiro do Palácio do Alvorada, que resultou em um ferimento na cabeça. Os médicos decidiram que Lula precisa ficar em observação. Por causa da idade, o risco de sangramento no crânio é maior, e ele vai precisar repetir nos próximos três dias os exames de imagem para certificar-se de que sua saúde está em ordem. Em Brasília, porém, Lula poderá trabalhar normalmente.

Quem gosta de ver teoria da conspiração em tudo já acha que inventaram um atestado médico para o presidente poder faltar à reunião do Brics. Seria a primeira vez que Lula posaria lado a lado com Vladimir Putin desde que assumiu o seu terceiro mandato. A proximidade do governo brasileiro com o ditador russo está mantida, apesar da ultrajante violação da lei internacional e dos crimes de guerra contra Ucrânia. Proximidade, aliás, que também existia no governo anterior, de Jair Bolsonaro.

O Brics vem sendo usado, por exemplo, para que Rússia e Irã contorne sanções financeiras adotadas pelos Estados Unidos e por países da Europa, além de servir à China para enfrentar barreiras a seus produtos e serviços tecnológicos

Mas, com a guerra sem fim à vista e cada vez mais afetando os interesses dos países europeus e com o momento político decisivo nos Estados Unidos, que está prestes a escolher um novo ocupante da Casa Branca, ia pegar mal junto aos parceiros ocidentais do Brasil um aperto de mão de Lula com Putin. Também estará presente no encontro o novo presidente do Irã, Masoud Pezeshkian. Apesar de Lula já ser um crítico ferrenho do governo de Israel, seria muito questionado por se encontrar com o iraniano em um momento em que os dois países estão à beira de uma guerra aberta.

Por outro lado, existe um risco na ausência de Lula no encontro de Cúpula, que é o fato de a China e a Rússia quererem incluir Nicarágua e Venezuela no grupo de países associados ao Brics. O Brics está em processo de expansão, e isso não deveria interessar ao Brasil porque dilui a voz da nossa diplomacia no grupo e aumenta o domínio da China, que tem mais influência sobre os novos países. No núcleo duro do Brics, ainda há resistência à supremacia chinesa por parte da Índia, que possui uma relação tensa com Pequim. (A reunião na Rússia servirá, inclusive, para reduzir essas tensões, com o possível anúncio de um acordo para resolver uma disputa de fronteira.)

Mas a inclusão da Nicarágua e da Venezuela seria um problema ainda maior para a diplomacia brasileira. O Brasil está praticamente rompido com a Nicarágua. E a Venezuela fez uma eleição fraudulenta da qual o governo brasileiro era fiador. Lula não reconheceu a vitória declarada pelo ditador Nicolás Maduro, mas também não condenou diretamente ou denunciou a fraude. Seu interesse é permanecer nessa posição dúbia. Se ele concordar com a entrada da Venezuela no Brics, estará reconhecendo a legitimidade de Maduro, e isso seria um desastre para a credibilidade da diplomacia brasileira, além de ser algo que certamente renderia muitas críticas a Lula no debate político dentro do Brasil.

O fato de ele não estar presente na reunião em tese dificulta a negociação. Não haverá o peso do chefe de Estado e de governo dizendo "não" à adesão desses países. Quem vai ter que estabelecer o limite do Brasil, de negar a entrada da Venezuela no Brics, é o chanceler Mauro Vieira, que estará presente. Mas não se pode nunca esquecer que o assessor internacional da Presidência é Celso Amorim, que tem uma tendência a ficar do lado de Rússia e China em muitas questões geopolíticas. Não seria de espantar se houvesse uma reviravolta nesse tema, com o Brasil encontrando alguma brecha ou justificativa para permitir a possibilidade de adesão dos dois países latino-americanos ao grupo.

Fato é que o cancelamento da viagem de Lula à Rússia não evita também o constrangimento do apoio tácito do Brasil à utilização do Brics para defender outros temas de interesse da Rússia e da China. O Brics vem sendo usado, por exemplo, para que Rússia e Irã contorne sanções financeiras adotadas pelos Estados Unidos e por países da Europa, além de servir à China para enfrentar barreiras a seus produtos e serviços tecnológicos.

Um dos um principais objetivos de Putin como anfitrião do encontro de cúpula desta semana é convencer os outros países do Brics a criar uma plataforma alternativa para transações financeiras internacionais, abolindo a dependência do dólar para pagamentos no comércio entre países, por exemplo. O novo sistema de pagamentos seria baseado em uma rede formada pelos bancos centrais dos países do Brics. Obviamente, o interesse de Putin é em encontrar formas de escapar das sanções financeiras impostas por americanos e europeus como reação à sua guerra ilegal na Ucrânia.

Lula já foi seduzido por essa ideia. Não foram poucas as vezes em que criticou a dependência do dólar nas transações internacionais, além de já ter defendido a criação de uma moeda comum do Brics.

Mas o plano enfrenta, é claro, a oposição dos Estados Unidos. Tanto do atual governo, quanto do candidato presidencial Donald Trump, que já avisou que vai punir com pesadas tarifas de importação os países que abandonarem ou reduzirem o uso do dólar como moeda de transação comercial ou de reserva.

O Brics foi criado durante os primeiros governos de Lula para que os seus países-membros discutam temas de interesse mútuo e cooperem para alavancar o desenvolvimento de suas economias e para ampliar sua influência internacional. O cenário internacional hoje, porém, é bastante diferente. O Brasil precisa tomar muito cuidado para não ser usado para alavancar interesses que não são os seus.

Conteúdo editado por: Jocelaine Santos

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