Será que há algo a mais nessa guerra do governo Lula aos juros e na indiferença que o presidente vem demonstrando em relação ao mercado financeiro desde sua eleição? Talvez algo relacionado aos planos de criar uma moeda digital estatal no país, a exemplo do que vem ocorrendo globalmente? Ou será que vão querer interditar também este debate?
Antes de voltar à questão da moeda digital, falemos da interdição do debate. A estratégia para pressionar o Banco Central (BC) a reduzir a taxa básica de juros, nas últimas semanas, se deu em duas frentes. Na primeira, o presidente Lula, ministros e parlamentares de esquerda pautaram a discussão, criticando o presidente do BC Roberto Campos Neto e classificando a Selic nos patamares atuais como "vergonhosa" e até como uma traição ao povo brasileiro, como se os integrantes do Copom tivessem prazer ou interesse político em frear a economia com juros altos.
Que tal levantar outra lebre, a da moeda digital, estudada desde 2021 pelo Banco Central, e que tem potencial para enfraquecer os bancos privados e aumentar o poder do Estado?
Na segunda frente, comentaristas políticos e colunistas alinhados ao governo passaram a desqualificar os jornalistas que criticaram a pressão de Lula e que lembraram que foi com a adoção do remédio amargo da elevação da Selic que o BC conseguiu evitar que o Brasil tivesse uma inflação ainda mais alta nos últimos meses, algo que outros países não conseguiram. Teria sido um milagre? Tais jornalistas, dizem os blogueiros de esquerda, estariam sendo pautados por analistas do mercado financeiro e não estariam nem aí para o risco de desaceleração da economia. Curioso que até alguns meses atrás, quando o presidente ainda era Jair Bolsonaro, nenhum desses comentaristas que dizem amém a Lula estava se insurgindo contra a Selic elevada.
Já que o debate que o próprio governo iniciou está interditado, que tal levantar outra lebre, a da moeda digital que está sendo estudada desde 2021 pelo Banco Central e que deve ser lançada no ano que vem, com potencial para enfraquecer os bancos privados e aumentar o poder do Estado sobre os cidadãos?
Diversos países do mundo estão lançado, ainda em caráter experimental, sua própria CBDC (Central Bank Digital Currency, ou "moeda digital do banco Central"). Na China, o processo está mais avançado. Mais de 100 milhões de cidadãos têm sua carteira digital vinculada diretamente ao banco central chinês, sem passar pela intermediação de instituições bancárias de varejo, e já realizaram transações que somam bilhões de yuans.
Um sistema financeiro controlado de ponta a ponta por Estados é o futuro distópico que se vislumbra quando se pensa nas possibilidades extremas das CBDCs.
Mas o que é uma CBDC? De maneira bem resumida, é uma moeda digital que, ao contrário das de criptomoedas como Bitcoin ou Ethereum, não é privada e tampouco descentralizada. Trata-se, como o próprio nome diz, uma moeda digital criada e lastreada pelo Estado, por meio de seu banco central. Cidadãos e empresas fazem transações digitais uns com os outros de maneira virtual usando suas carteiras vinculadas ao BC, sem precisar dos bancos.
Os bancos privados, com razão, estão apavorados, por mais que muitos especialistas digam que seus serviços continuarão sendo necessários para muitas outras coisas. Tudo depende de quais regras cada banco central vai adotar para essas moedas. Por exemplo, se não houver limite do total de moeda digital que cada pessoa ou empresa pode movimentar sem custos, se o dinheiro depositado na carteira digital estatal for remunerado com juros e se, além de tudo, o Estado ainda resolver fornecer crédito diretamente aos cidadãos por meio de seu banco central, o que mais os bancos convencionais poderão oferecer?
Surge, aí, o componente político da questão. Enquanto a posse de criptomoedas ou de dinheiro em espécie permite o anonimato (e mesmo os depósitos bancários atuais garantem algum grau de sigilo), o mesmo não tem como ocorrer com as moedas digitais estatais. O Estado consegue saber quem pagou o quê para quem, até porque precisará rastrear movimentações para finalidades criminosas (como terrorismo e narcotráfico), e, em uma situação de totalitarismo, pode até impedir que determinadas transações sejam feitas. Imagine um regime como a China com o controle total sobre o principal — e, quem sabe, em algum momento, o único — meio de pagamento disponível.
Um sistema financeiro controlado de ponta a ponta por Estados, sem intermediários privados, esse é o futuro distópico que se vislumbra quando se pensa nas possibilidades extremas das CBDCs.
O real digital é uma política de Estado, não de governo. Não começou com Lula e, se for de fato implantado, não terminará com sua gestão.
Mais de 100 países já estão estudando — ou já concluíram, em fase experimental — a implantação de suas próprias moedas digitais. Ninguém quer ficar atrás. Claro que existe uma preocupação de afastar os temores dos bancos. Muitas autoridades monetárias desmentem que o sistema vá substituir o sistema financeiro atual.
Há dois meses, ao falar sobre os planos para uma moeda digital estatal no Brasil, Roberto Campos Neto disse que o modelo será basicamente uma junção do sistema de depósitos bancários já existente e da nova carteira digital. "Você vai ter duas carteiras: o Pix, que vai ser o integrador da carteira do dinheiro físico. E vai ter a carteira digital", disse Campos Neto.
Mas é óbvio que, com o passar do tempo e com a evolução das tendências do setor em nível global, o sistema pode se tornar cada vez mais centralizado.
Duvido que, pelo menos no caso do Brasil, o atual governo seja capaz de antever as oportunidades totalitárias das moedas digitais estatais.
O real digital, portanto, é uma política de Estado, não de governo. Não começou com Lula e, se for de fato implantado, não terminará com sua gestão.
Mas é interessante se perguntar até que ponto essa nova realidade tão próxima está motivando a atitude atual do governo Lula nas discussões em torno da autonomia do Banco Central, do desprezo pelos humores do "mercado" e da pressão sobre os juros sem preocupação com a inflação.
Vale lembrar que existem estudos, confirmados tanto pelo governo brasileiro quanto pelo argentino, de criação de uma moeda comum para transações comerciais no Mercosul — que seria nada mais, nada menos, do que uma moeda digital.
E também não se pode esquecer que Lula quer colocar a ex-presidente Dilma Rousseff na presidência do banco dos Brics, grupo que reúne Brasil, China, Rússia, Índia e África do Sul. E que uma das ideias é justamente a de usar uma ou mais CBDCs nas relações comerciais entre esses países.
Alguém com tendências conspiracionistas poderia imaginar que os governantes de alguns países, e talvez o próprio Lula, estão contando com o futuro das moedas digitais estatais para aumentar seu poder. Sou mais cético, e duvido que, pelo menos no caso do Brasil, o atual governo seja capaz de antever as oportunidades totalitárias das moedas digitais estatais.
Bolsonaro e mais 36 indiciados por suposto golpe de Estado: quais são os próximos passos do caso
Bolsonaro e aliados criticam indiciamento pela PF; esquerda pede punição por “ataques à democracia”
Deputados da base governista pressionam Lira a arquivar anistia após indiciamento de Bolsonaro
A gestão pública, um pouco menos engessada
Inteligência americana pode ter colaborado com governo brasileiro em casos de censura no Brasil
Lula encontra brecha na catástrofe gaúcha e mira nas eleições de 2026
Barroso adota “política do pensamento” e reclama de liberdade de expressão na internet
Paulo Pimenta: O Salvador Apolítico das Enchentes no RS
Deixe sua opinião