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Não é guerra. Oito militares do Exército Brasileiro foram condenados na última quinta-feira (14) a mais de 28 anos de prisão por duplo homicídio e também tentativa de homicídio, pelo episódio em que dispararam 257 tiros de fuzil e pistola contra o carro do músico Evaldo Rosa e contra o catador de material reciclável Luciano Macedo, que acudiu para socorrê-lo, em abril de 2019. Ambos morreram. O sogro de Rosa ficou ferido. Do total de projéteis, 62 atingiram o veículo de Rosa, dos quais nove alvejaram seu corpo.
Os advogados das famílias das vítimas afirmam que essa foi a primeira vez que um tribunal da Justiça Militar no Brasil condena integrantes das Forças Armadas pelo assassinato de civis. Apesar de ainda poder ser revertida por recurso ao Tribunal Superior Militar, a condenação em primeira instância, por seu ineditismo, comprova que a luta contra a criminalidade no Brasil parece, mas não é guerra.
Parece guerra porque há enfrentamentos armados com equipamentos bélicos, de ambos os lados, antes só encontrados em conflitos tradicionais. E também porque muitas vezes envolve o Exército, principalmente no Rio de Janeiro, fazendo o papel comumente de atribuição da polícia.
Mas, acima de tudo, parece guerra porque a repressão do Estado aos grupos criminosos — e, claro, a atuação violenta desses grupos entre si e contra a população — produzem cenas dignas de guerras. E indignas, como nas guerras.
Mas não é guerra. Primeiro, porque os criminosos, por organizados e bem armados que sejam, não lutam por objetivos políticos. Podem até se infiltrar na política para atingir seus fins, mas sua razão de ser é comercial: fazem parte de organizações com foco em negócios ilícitos. Não são rebeldes ou insurgentes com uma agenda política, territorial, religiosa, étnica ou nacionalista.
Segundo, não é guerra porque os meios adotados pelos combatentes não estatais para atingir seus fins não consiste na destruição do inimigo, na destituição do poder vigente ou na alteração da ordem social. Não há destruição da infraestrutura, como ocorrem em verdadeiras guerras. Eles atuam em paralelo, integrados ao tecido social — que é, afinal, sua fonte de sustento, seja por meio do tráfico de drogas, seja por roubos, etc.
Terceiro, não é guerra porque, se fosse, seria enquadrada no Direito Internacional Humanitário, também chamado de Lei da Guerra, passível de ser acionada para proteger os civis, como Evaldo Rosa e Luciano Macedo.
O Direito Internacional Humanitário existe, em grande parte, porque em situações de conflito armado um Estado em guerra (seja contra outro Estado, seja contra adversários internos) não tem capacidade de coibir os próprios abusos na adoção da força.
O Direito Internacional reconhece que a ação de um Estado durante uma guerra pode impactar na população civil, mas estabelece normas que restringem como a atuação militar pode ocorrer — justamente para proteger os não combatentes.
Há um grande debate na ciência política e no direito internacional em relação à validade ou não de se classificar o combate às drogas ou a organizações criminosas armadas como "guerras", reconhecendo que em muitos casos os conceitos se confundem.
A jurista americana Monica Hakimi, em um influente artigo de 2012, propôs três regras de atuação para o Estado que servem tanto para conflitos armados propriamente ditos quanto para os confrontos entre forças de segurança (polícia e militares) e o crime organizado, a exemplo do que ocorre no Rio, com o intuito de proteger a população civil.
A primeira regra é o princípio da segurança-liberdade, pelo qual os benefícios de segurança da atuação dos agentes do Estado devem superar seus custos para as liberdades individuais. A segunda é o princípio da mitigação, pelo qual o Estado deve buscar métodos mais razoáveis de atuação, menos intrusivos, para conter as ameaças à segurança. A terceira é o princípio do erro, que exige dos agentes do Estado a adoção de avaliações prévias para reduzir os riscos de cometer equívocos em suas ações.
No episódio que levou à morte de Rosa e Macedo, o Estado brasileiro falhou em todos os três princípios. É preciso que justiça seja feita para que isso comece a mudar.
Ao condenar oito militares que, com evidente intenção de matar (ainda que pensassem se tratar de bandidos), fuzilaram dois homens inocentes, o Estado brasileiro, por meio da Justiça Militar, demonstra, ao menos nesse caso e por ora, ser capaz de proteger os direitos de sua população, coibindo abusos no uso da força que o contrato social lhe confere.
Não é guerra, portanto.