Jair Bolsonaro, seus filhos políticos, alguns de seus aliados, colegas de indiciamento e certos influenciadores bolsonaristas têm insistido no argumento de que as conclusões da Polícia Federal (PF) são fantasiosas, pois não existe crime apenas no pensamento. Ou seja, que criminoso não é quem pensa em dar um golpe. Deixemos de lado a constatação de que esse argumento embute a velada admissão de que, de fato, houve quem no círculo palaciano cogitou dar um golpe para manter Bolsonaro no poder ilegalmente. Vamos focar na hipótese de que tudo não foi além do mero pensamento, da simples intenção.
A Polícia Federal reuniu informações que sugerem que os conspiradores efetivamente partiram para a ação. Se não deu certo, foi por incompetência deles ou porque as circunstâncias não ajudaram e as instituições, afinal, funcionaram pelo menos para isso. Lembrando que um golpe não precisa dar certo para ser considerado crime. A lei é bastante clara ao considerar que a “tentativa” já é crime.
Nada disso estava apenas no campo das ideias. Foram ações concretas, e daí a suspeita mais do que justificada de que houve uma tentativa de golpe. Se as provas são robustas o suficiente para uma denúncia e, depois, para a condenação dos indiciados, saberemos nos próximos meses
Estão no Código Penal os artigos que, entre outros, substituíram a Lei de Segurança Nacional: "Art. 359-L. Tentar, com emprego de violência ou grave ameaça, abolir o Estado Democrático de Direito, impedindo ou restringindo o exercício dos poderes constitucionais: Pena - reclusão, de 4 (quatro) a 8 (oito) anos, além da pena correspondente à violência. (...) Art. 359-M. Tentar depor, por meio de violência ou grave ameaça, o governo legitimamente constituído: Pena - reclusão, de 4 (quatro) a 12 (doze) anos, além da pena correspondente à violência".
No fim de semana, foram divulgados pelo jornal Estadão e pela TV Globo alguns dos áudios que embasaram o indiciamento de Bolsonaro e outras 36 pessoas por crimes como tentativa de golpe de estado, tentativa de abolição do Estado Democrático de Direito e organização criminosa. Eis alguns trechos em que os militares falam abertamente em tentativa de golpe, na primeira semana de novembro, logo após a derrota eleitoral:
"São duas coisas. A primeira, durante a conversa que eu tive com o presidente, ele citou que o dia 12, pela diplomação do vagabundo, não seria uma restrição, que isso pode, que qualquer ação nossa pode acontecer até 31 de dezembro e tudo. Mas, p*, aí na hora eu disse, pô presidente, mas o quanto antes, a gente já perdeu tantas oportunidades" (general da reserva Mario Fernandes, então o número 2 da Secretaria Geral da Presidência, para Mauro Cid, ajudante de ordens de Bolsonaro). No trecho acima, Fernandes menciona a diplomação, na Justiça Eleitoral, de Lula e Geraldo Alckmin como presidente e vice eleitos, o que ocorreu em 12 de dezembro.
Em outro trecho, o coronel Reginaldo Vieira de Abreu, conhecido como Velame, envia o seguinte áudio ao general Fernandes: "Esse pessoal acima da linha da ética não pode estar nessa reunião, tem que ser petit comité, pô. Tem que ser a ‘rataria’, ele e a ‘rataria’. Com o comandante do exército, mas petit comité, essa galera não pode estar aí, p*, aí tem que debater o que que vai ser feito".
Já existe uma tentativa de interpretar esses áudios como mera elucubração desses militares. Que eles estão falando em desejo de fazer algo, mas não que fizeram algo. Se isso não colar, já começa a ser aventada a hipótese alternativa de que Bolsonaro não autorizou nada. A defesa de Walter Braga Netto, vice de Bolsonaro na chapa presidencial derrotada e um dos indiciados, diz que falta contexto à investigação. Mas será mesmo que, se colocarmos as evidências em contexto, as suspeitas esmorecem, demonstrando que se tratava de qualquer coisa, menos tentativa de golpe e que Bolsonaro não autorizou nada? A tal autorização para "qualquer ação" seria o quê? A reunião em que o "pessoal acima da linha da ética" não poderia participar discutiria o quê?
Mas é exatamente quando se coloca esses áudios em contexto que o significado deles fica mais claro. Por exemplo, quando o general Fernandes diz que conversou com o então presidente, e que este teria dado aval para "qualquer ação" até o dia 31 de dezembro, inclusive no dia da diplomação de Lula. O contexto daquela conversa, o momento em que ela ocorreu, era o da recusa de Bolsonaro em reconhecer a derrota. O então presidente se recolheu no Palácio do Alvorada e passou semanas praticamente em silêncio público. Mas ele não estava parado.
Ele fez diversas reuniões com aliados mais próximos ao longo daquelas semanas e sabe-se agora, pelo depoimento do então comandante do Exército, que em pelo menos uma dessas reuniões com chefes militares ele tratou com eles sobre as minutas que dariam um verniz institucional a um golpe.
O contexto todo era o de preparar um ambiente propício para que as Forças Armadas interviessem e revertessem o resultado das urnas. Bolsonaro, seus aliados e até o seu partido trataram de espalhar a versão de que a eleição tinha sido fraudada. Em reunião gravada antes das eleições, Bolsonaro exigiu que seus ministros encampassem o discurso de que as urnas seriam fraudadas. Depois das eleições, o PL pediu para cancelar os votos de boa parte das urnas, por exemplo. E essa difusão da ideia de fraude não era por acaso. Isso era discutido claramente nas mensagens encontradas pela PF como estratégia de comunicação com o objetivo de manter os apoiadores de Bolsonaro nas ruas, nos bloqueios das estradas, nos acampamentos em frente aos quartéis. Aliás, há mensagens indicando que os militares que conspiravam pelo golpe agiam diretamente para estimular esses atos. Tudo isso vai muito além da simples intenção. Estamos falando de ações. Ações ainda no campo das suspeitas, sim, pois caberá à Procuradoria-Geral da República e depois ao Supremo Tribunal Federal (STF) analisar as provas, mas ainda assim ações. Não meros pensamentos.
Os militares que se negavam a participar de qualquer ilegalidade passaram a ser ameaçados e pressionados por outros militares, conforme outros fatos elencados pela investigação da PF. Essa pressão ocorreu até mesmo publicamente, via meios de comunicação, em críticas diretas aos oficiais relutantes. Essa tensão entre militares legalistas e golpistas fica evidente nos áudios, quando se fala em fazer reuniões que só incluam a "rataria", mas ninguém "acima da linha da ética". Por que ninguém "acima da linha da ética"? Para não se opor aos planos mais radicais?
O contexto todo das ações de Bolsonaro e de muitos de seus aliados antes e depois das eleições, fatos que são públicos e notórios, justifica interpretar as evidências que estão surgindo agora, como esses áudios, como uma tentativa de golpe. Bolsonaro e os outros supostos conspiradores construíram uma justificativa, que era a acusação de fraude nas urnas. Eles incentivaram as mobilizações populares que dariam legitimidade para o golpe. Eles se comunicavam intensamente entre si, inclusive em reuniões com integrantes do alto escalão do governo, para obter a adesão de mais militares à conspiração. Eles produziram documentos que serviriam para dar verniz jurídico à intervenção militar. E eles planejaram, até mesmo botaram no papel e foram à rua para executar, ações concretas para afastar do caminho o presidente e o vice eleito e o então presidente da Justiça Eleitoral. É isso que indica a investigação da PF.
Nada disso estava apenas no campo das ideias. Foram ações concretas, e daí a suspeita mais do que justificada de que houve uma tentativa de golpe. Se as provas são robustas o suficiente para uma denúncia e, depois, para a condenação dos indiciados, saberemos nos próximos meses. Em tempo: quem apoiou e torceu para que os "militares agissem" deveria se preocupar. Se todas as suspeitas ficarem comprovadas, no mínimo entrará para a história como apoiador ou passador de pano de um golpe fracassado.
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