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O petista Paulo Pimenta, ministro-chefe da Secretaria de Comunicação Social da Presidência, classificou como "lamentável", "vergonhoso" e "vexatório" o caso das joias presenteadas por representantes de países estrangeiros a Jair Bolsonaro e que pessoas de confiança do ex-presidente teriam tentado passar nos cobres. É um clássico exemplo do roto falando mal do esfarrapado, mas é disso que vive a classe política brasileira, infelizmente. O duplo padrão, contudo, repete-se também na base daqueles que apoiam Lula e agora se escandalizam com o rolo em que se vê envolvido Bolsonaro. No outro extremo, apoiadores de Bolsonaro entraram em estado de negação.
Esses apoiadores leem ou escutam as notícias sobre a maracutaia das joias e relógios com olhos e ouvidos seletivos, ignorando as menções a evidências constrangedoras, como as mensagens do ex-ajudante de ordens de Bolsonaro, o tenente-coronel Mauro Cid, combinando com o pai, o general Mauro Lorena Cid, que tinha um cargo de confiança do governo nos Estados Unidos, de como vender as peças recebidas pelo então presidente. Ou as mensagens em que Cid descreve como o dinheiro da venda seria repassado a Bolsonaro: "Tem vinte e cinco mil dólares com meu pai. Eu estava vendo o que que era melhor fazer com esse dinheiro, levar em cash aí. Meu pai estava querendo inclusive ir aí falar com o presidente". Cash, todos sabem, é dinheiro em espécie.
O argumento dos apoiadores de Lula: tudo não passava de uma perseguição das elites ao primeiro ex-presidente operário, "do povo". O argumento, agora no campo político oposto, é o mesmo.
É isso que indicam as investigações da Polícia Federal: que assessores de Bolsonaro, supostamente com o conhecimento e em benefício dele, tentaram vender (em alguns casos com sucesso) os objetos de valor recebidos de comitivas ou autoridades estrangeiras. E que meses depois, quando a história das joias veio a público, correram para recuperar as peças, recomprando o que pudessem para devolver ao Estado brasileiro, como medida de contenção de danos (evitar prisões, processos, etc).
Pela lei brasileira, consolidada em entendimentos do Tribunal de Contas da União (TCU), presentes valiosos devem ser incorporados ao acervo da Presidência, ou seja, são propriedade do Estado. A regra é essa para evitar que autoridades brasileiras sejam "constrangidas" a retribuir com favores governamentais aos presentes caros, ou seja, para que agrados valiosos não sirvam de disfarce para propina. A exceção são itens consumíveis, como comidas e bebidas, ou de uso personalíssimo, como perfumes, roupas e medalhas condecorativas, sempre observado o critério do valor dos objetos.
Apesar disso, há também uma tentativa, por parte de alguns apoiadores de Bolsonaro, de naturalizar o caso, fingir que é normal que o presidente da República, seja durante o exercício do cargo, seja depois de deixá-lo, pegue para si ou tente ou mande vender, em proveito próprio, um relógio Rolex cravejado de diamantes e outros presentes, que deveriam ser tratados como patrimônio público.
O estado de negação desses apoiadores de Bolsonaro é semelhante ao estado de negação dos petistas quando confrontados com os esquemas de corrupção desvendados pela Operação Lava Jato, especialmente no que se referia aos favorecimentos obtidos por Lula junto às empresas envolvidas no caso. Muito antes de Lula ter tido suas condenações na Lava Jato anuladas pelo Supremo Tribunal Federal (STF), e é sempre bom lembrar que ele nunca foi inocentado no mérito, seus apoiadores ignoravam os pedalinhos com os nomes dos netos de Lula no sítio de Atibaia (que alegava não ser dele), planilhas da Odebrecht e outras provas e engajavam-se na campanha Lula Livre. O argumento: tudo não passava de uma perseguição das elites ao primeiro ex-presidente operário, "do povo".
O argumento, agora no campo político oposto, é o mesmo. Bolsonaro está apenas sendo vítima de uma perseguição política e nada de concreto haveria contra ele, "apenas, talvez" alguns rolos feitos por ex-assessores sem que ele tivesse conhecimento. É uma questão de acreditar. Acreditar com conotação de crença, mesmo. Uma forma quase religiosa de preferência política, em que os fatos e a racionalidade são deixados de lado, superados pelo afeto ao líder. Seja ele Bolsonaro ou Lula. Quando a realidade desabonadora sobre eles se revela, o estado de negação se instala entre seus apoiadores mais empedernidos.
É mais fácil deixar-se levar por essa estratégia de fuga cognitiva do que enfrentar a decepção com o seu herói ou mito político.