Toda teoria da conspiração necessita de um bom vilão. E a história que se conta na Venezuela para convencer a população e a comunidade internacional de que a região de Essequibo, que ocupa 70% da vizinha Guiana, lhe pertence por direito tem — ironia do destino — um vilão russo. E não um qualquer: trata-se de um jurista russo histórico, um dos grandes diplomatas do país que atualmente, sob a batuta do ditador Vladimir Putin, auxilia por baixo dos panos o colega venezuelano Nicolás Maduro em suas ameaças de anexação do território guianense.
O jurista russo em questão é Fyodor Fyodorovich Martens (1845-1909), que na virada dos séculos XIX e XX atuou como árbitro em controvérsias territoriais e como negociador de paz envolvendo algumas das principais potências da época. Entre outras questões que ele arbitrou estão a disputa entre o Reino Unido e a França pela posse de Terra Nova e Labrador, no Canadá, decidida em 1891; as reivindicações de México e Estados Unidos em torno dos recursos de um fundo católico milionário, concluídas em 1902 em favor dos americanos; o tratado que colocou fim à Guerra Russo-Japonesa (1904-1905); e a contenda fronteiriça entre a Venezuela e a Guiana Britânica (atual Guiana), que definiu a posse de Essequibo à então colônia do Reino Unido na América do Sul por meio do Laudo de Paris, de 1899. O papel de Martens na solução dessa controvérsia é usado como justificativa até hoje pela Venezuela para contestar a soberania guianense sobre o território.
O grupo de arbitragem era formado por cinco especialistas, tendo Martens como presidente, e a conclusão favorável ao Reino Unido foi unânime. Martens foi alvo de uma acusação póstuma feita por um dos integrantes da equipe de advogados que representava a Venezuela. Sim, o acusador já estava morto quando as alegações contra Martens vieram à tona. Severo Mallet-Prevost, o advogado da Venezuela, havia deixado um memorando sobre o caso para um de seus sócios em um escritório em Nova York. Em 1949, Otto Schoenrich, colega de Mallet-Prevost, publicou o teor da acusação, segundo a qual Martens pressionou os dois árbitros americanos do caso a aceitar a votação unânime que concederia Essequibo à Guiana. Caso contrário, os outros três árbitros, ele incluso, votariam por uma solução ainda pior para a Venezuela, transferindo um naco do seu território para os britânicos.
A acusação era toda baseada no testemunho de uma pessoa, já falecida, que estava a serviço da equipe jurídica da Venezuela. No entanto, foi o que bastou para embasar a contestação venezuelana ao território de Essequibo nos últimos 75 anos.
Recentemente, vieram à tona indícios de que a acusação de parcialidade contra Martens, mais do que carecer de provas concretas, é inteiramente falsa. Em 2022, dois pesquisadores russos (Elizaveta Rachkova, que atua em um centro de resolução de disputas internacionais em Genebra, na Suíça, e Iliya Rachkov, professor do Instituto de Relações Internacionais de Mostou e advogado de um escritório especializado em arbitragem internacional) publicaram trechos inéditos dos diários de Fyodor Fyodorovich Martens sugerindo que o jurista russo atuou com independência no caso Venezuela versus Guiana Britânica.
Mas não é nada fácil reconstruir a imagem de alguém que serve como bom vilão para a uma causa nacionalista.
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