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Indicada por Jair Bolsonaro no ano passado para o Tribunal Superior Eleitoral (TSE), a ministra Maria Clara Bucchianeri tem sido um raro exemplo de integrante da corte que exerce a autocontenção em seu poder decisório nessas eleições. Ela já concedeu alguns direitos de resposta e remoções de conteúdos específicos considerados falsos, tanto pro lado de Bolsonaro quanto de Lula, mas tem evitado impor restrições prévias a publicações ou proibições "por atacado", ou seja, que abrangem uma vasta gama de publicações e temas. Bucchianeri costuma alertar, em seus votos no plenário, muitas vezes minoritários, que a Justiça Eleitoral precisa atuar com a menor intervenção possível no que ela chama de "livre mercado de ideias políticas".
Bucchianeri, por exemplo, votou contra as quase duas centenas de direitos de resposta concedidos à campanha Lula contra Bolsonaro, mas foi derrotada no plenário. Como relatora da ação, porém, foi obrigada a determinar o cumprimento das inserções petistas no tempo dedicado à campanha do presidente em rádio e TV. Posteriormente, acatou os embargos da defesa e suspendeu as inserções até nova análise do colegiado.
Há algumas semanas, ao negar um pedido do PT para tirar do ar o canal Lulaflix, recheado de críticas ao ex-presidente, ela afirmou que "o minimalismo e a atuação necessariamente cirúrgica que devem nortear a intervenção desta Justiça Eleitoral no livre mercado de ideias políticas e eleitorais são incompatíveis com qualquer supressão discursiva em atacado".
Posições como as de Bucchianeri, no entanto, não são as que têm prevalecido no TSE, que, a pretexto de combater as fake news, vem impondo verdadeira censura, não apenas a postagens nas redes sociais, mas também ao trabalho de veículos de imprensa, a exemplo do que aconteceu com a Gazeta do Povo, com a Jovem Pan News e com os sites Antagonista/Crusoé.
A tentação autoritária de calar a boca de jornalistas e comentaristas e impedir que certas informações ou ideias cheguem à população não se restringe ao campo lulista. Em setembro, o senador Flávio Bolsonaro (PL-RJ) conseguiu na Justiça uma liminar para censurar reportagens do UOL que expunham as compras em dinheiro vivo de dezenas de imóveis por familiares do presidente. Os conteúdos tiveram que ser retirados do portal de notícias e das redes sociais dos jornalistas. Depois, em recurso no Supremo Tribunal Federal (STF), o ministro André Mendonça derrubou a decisão.
Ao longo do seu governo, o próprio presidente Bolsonaro, incomodado com críticas, botou a Polícia Federal, via ordem do ministro da Justiça, para enquadrar jornalistas, cartunistas e cidadãos comuns com base na agora extinta Lei de Segurança Nacional.
A luta para garantir o direito constitucional da liberdade de expressão é inglória em um país que ao longo das duas décadas do regime militar acostumou-se à imposição de pensamento que vem de cima para baixo.
A ameaça atual é uma escalada de um fenômeno que já vem de anos, a censura judicial, que tinha outros contornos e que muitos negligenciaram. Entre os que alertaram para o perigo está a jornalista Julia Carvalho, que em 2013 publicou o livro "Armodaçados", pela Editora Manole.
Ela atribuiu à aprovação do novo Código Civil, de 2002, a abertura de brechas para a censura judicial, ao estabelecer, em seu artigo 20, que "a divulgação de escritos, a transmissão da palavra, ou a publicação, a exposição e a transmissão de imagem de uma pessoa poderão ser proibidas" se "lhe atingirem a honra, a boa fama ou a respeitabilidade". Dessa forma, a lei realçou o direito à intimidade, à vida privada e à honra em detrimento do direito à informação e à livre expressão — permitindo, para além da simples indenização, também a proibição de conteúdos. Isso abriu as portas não apenas para reparações e direitos de resposta, mas para a censura prévia via decisão judicial.
Decisões com esse caráter censório começaram a pipocar nas instâncias inferiores do Judiciário, aplicadas por juizes não contentes em restringir-se ao papel "minimalista" defendido agora por Bucchianeri.
Um das mais simbólicos atos de censura judicial foi o que proibiu o jornal Estadão, em 2009, de publicar reportagens sobre investigações que afetavam um dos filhos do ex-presidente José Sarney. A censura, imposta por um desembargador do Tribunal de Justiça do Distrito Federal, acatava o argumento de Fernando Sarney de que as reportagens violavam sua privacidade familiar, apesar de as supostas maracutaias narradas nas reportagens envolverem dinheiro público e estatais — e, portanto, serem de inegável interesse público. A censura só foi derrubada quase nove anos depois, em 2018, pelo STF.
Para se viver numa sociedade verdadeiramente democrática e com "livre mercado de ideias políticas", é preciso aceitar que só se pode combater eventuais abusos cometidos pela imprensa "depois que o dano já foi feito", conforme afirma Julia Carvalho. É duro, mas sem isso não há liberdade.
Proibir a manifestação de ideias e a divulgação de informações a priori não deve ser uma opção.