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Já disse antes e repito: a sociedade precisa ficar atenta para que as medidas adotadas para defender a democracia não ultrapassem os limites da própria democracia, justificando a normalização da censura, do desrespeito ao devido processo legal e da arbitrariedade judicial. Essa necessária atenção agora precisa se voltar para o conjunto de medidas para inibir impulsos golpistas que vem sendo chamado pelo ministro da Justiça, Flávio Dino, de Pacote da Democracia.
As propostas foram apresentadas a Lula na semana passada e algumas delas devem ser encaminhadas ao Congresso Nacional nos próximos dias.
E se o atual ou um futuro governo resolverem usar a Guarda Nacional para oprimir manifestações legítimas?
O pacote inclui uma PEC (Proposta de Emenda à Constituição) para a criar uma Guarda Nacional, cuja finalidade seria proteger os prédios públicos de Brasília e atuar em operações especiais nas fronteiras e em terras indígenas e de conservação; um projeto de lei para endurecer as penas para crimes contra o Estado Democrático de Direito e de Terrorismo, incluindo penas específicas para quem atenta contra a vida dos presidentes da República, do Senado, da Câmara e do STF; um projeto de lei para facilitar o arresto de bens de financiadores de atos contra a democracia; e uma Medida Provisória (MP) para coibir postagens de cunho golpista na internet.
Há indícios fortes de que as forças de segurança do Distrito Federal e o Exército falharam (por comissão ou omissão, ainda se está investigando) em suas obrigações, permitindo que ocorressem as cenas de vandalismo do último dia 8 de janeiro na invasão das sedes dos Três Poderes por manifestantes que almejavam um golpe de Estado para depor o presidente Lula.
Flávio Dino quer que as empresas digitais, o que inclui as mídias sociais, sejam responsáveis por filtrar os conteúdos golpistas.
Mas não está claro que a criação de uma nova força, no caso a Guarda Nacional, é realmente necessária e justifica o custo adicional que isso certamente trará aos cofres públicos.
O governo petista sente que, por não ter controle total sobre o Exército e sobre a Polícia Militar do DF, não está imune a outros episódios semelhantes. Por isso quer ter uma força específica sob seu comando direto. Mas isso também pode ser temerário, a depender das circunstâncias. E se o atual ou um futuro governo resolverem usar a Guarda Nacional para oprimir manifestações legítimas ou para atividades de repressão que extrapolam sua jurisdição?
Os dois anteprojetos que visam a endurecer as penas e o bloqueio de bens para quem pratica ou financia crimes contra o Estado Democrático de Direito são menos controversos, pois basicamente tornam mais rígidas as punições para quem se aventura em tentativas golpistas, o que já está tipificado em lei. No que se refere à Lei Antiterrorismo, porém, de nada adianta aumentar as penas se o texto continuar excluindo a motivação política da definição de terrorismo.
O mais preocupante no tal Pacote da Democracia, porém, é o plano de editar uma medida provisória para impedir a disseminação de conteúdo golpista na internet, ou seja, mensagens que incitem crimes contra as instituições democráticas, conforme previsto nos artigos 359-L e 359-M do Código Penal.
No que se refere à Lei Antiterrorismo, de nada adianta aumentar as penas se o texto continuar excluindo a motivação política da definição de terrorismo.
Flávio Dino quer que as empresas digitais, o que inclui as mídias sociais, sejam responsáveis por filtrar os conteúdos golpistas, além de serem obrigadas a respeitar um prazo de apenas duas horas para remover postagens por determinação judicial.
Essas medidas são perigosas, pois podem levar à institucionalização da censura. Obrigam empresas que controlam Facebook, Twitter, Instagram, TikTok, entre outras, a criar equipes ou algoritmos dedicados à subjetiva missão de decidir quais conteúdos são ou não ameaças ao Estado Democrático de Direito. Além disso, essa parte do Pacote da Democracia proposto por Dino coloca nas mãos dos juízes um instrumento sumário de censura a posteriori que não dá chance de defesa aos autores das postagens.
Mais dia, menos dia, críticas legítimas ao governo ou a membros do Três Poderes serão interpretadas como ataques às instituições democráticas.
Além dos riscos embutidos na medida em si, causa estranheza a forma como o Ministério da Justiça pretende colocar isso em prática: por meio de Medida Provisória, e não de um Projeto de Lei. O correto seria submeter uma ideia tão polêmica, com potencial para violar o direito constitucional à liberdade de expressão, para ser discutida com profundidade no Congresso — por exemplo, incluindo o cerne da proposta na Lei das Fake News, que já está em tramitação na Câmara dos Deputados.
Ao defender que a questão seja discutida no Legislativo, não estou dizendo que ela deve ser aprovada, apenas que algo dessa gravidade não pode ser implantado com uma simples canetada presidencial.
Em 2017, a Venezuela aprovou (por meios inconstitucionais, diga-se de passagem) a Lei contra o Ódio, que na superfície também se propunha a cumprir um objetivo nobre, no caso "desarmar" as "vozes da violência, do terrorismo e do crime", nas palavras do procurador-geral Tarek Saab. Na prática, porém, a lei serviu para silenciar críticas de caráter político e para reprimir a imprensa e a oposição.
Um levantamento feito pela Reuters em 2020 com mais de 40 prisões que haviam sido feitas com base na Lei contra o Ódio revelou que todas, absolutamente todas, eram punições a cidadãos que haviam criticado o ditador Nicolás Maduro ou outros figurões do chavismo.
Um dos que foram punidos com base na tal lei era um ex-vereador que havia criticado o prefeito de uma cidade venezuelana por ter feito pouco ou nada para conter a pandemia de covid-19. O prefeito recorreu à procuradoria para que o seu opositor fosse denunciado e preso por crime de ódio, no que foi prontamente atendido.
É por situações semelhantes a essa que o Pacote da Democracia pode se tornar o Pacote da Censura. Mais dia, menos dia, críticas legítimas ao governo ou a membros do Três Poderes serão interpretadas como ataques às instituições democráticas.