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A pressa do governo do ditador Vladimir Putin em apontar o dedo para a Ucrânia após o ataque terrorista ocorrido na sexta-feira (22) nos arredores de Moscou indica que, mais uma vez, a verdade sobre um crime brutal ocorrido na Rússia ficará obscurecida pelos interesses políticos do regime.
O ataque terrorista foi rapidamente reivindicado pelo Estado Islâmico no Khorasan (ou Isis-K, na sigla em inglês). Khorasan é um nome antigo do Afeganistão que a matriz do Estado Islâmico no Iraque e na Síria passou a usar para se referir à sua primeira filial fora do mundo árabe. O grupo tem uma disputa com o Talibã, no Afeganistão, e já cometeu atentados contra o Irã. A própria Rússia também já alvo de ataques terroristas do Estado Islâmico no passado, por vários motivos, entre os quais os vínculos do Kremlin com o Talibã, que reassumiu o controle do Afeganistão após a retirada americana, e a ajuda russa ao regime do ditador Bashar Al Assad na Síria, onde o Isis se originou.
Para reforçar sua reivindicação do atentado, o Estado Islâmico também divulgou um vídeo com cenas do massacre, filmado pelos próprios terroristas, em que uma das vítimas é morta com golpes de faca no pescoço.
Mas Putin e outras autoridades russas evitam falar na possibilidade de que os fundamentalistas islâmicos do Isis estejam por trás do ataque terrorista, que matou cerca de 140 pessoas. Pode parecer surpreendente que essa linha de investigação seja negligenciada, ainda mais tão pouco tempo depois do atentado.
No caso do ataque terrorista nos arredores de Moscou, provavelmente nunca se saberá a verdade completa. Não importa quem é o verdadeiro culpado. Putin vai por a culpa na Ucrânia de qualquer jeito.
Em vez disso, Dmitri Medvedev, vice-chefe do Conselho de Segurança da Rússia, que já foi presidente do país em um esquema de alternância arquitetado para manter o poder de Putin, afirmou: "Se for estabelecido que estes são terroristas do regime de Kiev, é impossível lidar de forma diferente com eles e com os seus inspiradores ideológicos. Todos eles devem ser encontrados e destruídos impiedosamente como terroristas. Incluindo funcionários do Estado que cometeram tal atrocidade."
Alguns elementos são elencados, oficial ou informalmente, para espalhar a suspeita de que a Ucrânia está por trás do ataque terrorista. O primeiro é o fato de que os suspeitos presos teriam confessado que receberam pagamento para realizar a matança, motivo pelo qual fugiram em vez de permanecer na cena do ataque até o fim, como costuma ocorrer nas missões suicidas do grupo Estado Islâmico. O segundo é a informação de que eles foram detidos em uma estrada rumo à Ucrânia. O terceiro é a existência, entre os estrangeiros que lutam na Ucrânia contra a Rússia, de combatentes que usam símbolos do Estado Islâmico no ombro do uniforme.
A questão é que, do ponto de vista estratégico, não faz sentido a Ucrânia apoiar um ataque terrorista contra civis no coração da Rússia. Isso enfraquece a legitimidade da reação militar dos ucranianos à invasão russa em seu território. E fortalece, junto aos russos, a liderança de Putin como único capaz de enfrentar as ameaças à segurança nacional, e ainda justifica novos ataques contra a Ucrânia.
Essas também são as razões pelas quais Moscou tem pressa em encontrar elos dos terroristas com Kiev. Além do mais, se admitir que o atentado foi cometido pelo Estado Islâmico, Putin precisará reconhecer que os Estados Unidos, com base em informações obtidas por seu serviço de inteligência, estavam certos quando alertaram, dias antes, para o risco de um ataque terrorista de radicais islâmicos em Moscou.
Para o governo Putin, tudo se resume a moldar os fatos aos seus interesses. Seja em relação a crimes nos quais suspeita-se que seu regime esteja envolvido ou em crimes contra civis russos. Em 2014, mísseis fornecidos pela Rússia abateram um avião comercial da Malaysia Airlines que sobrevoava a Ucrânia, resultando em 298 mortos. Putin sempre negou envolvimento, apesar de as investigações da Holanda apontarem responsabilidade de grupos ligados ao seu regime.
Diversos adversários da ditadura russa já morreram em situações misteriosas, e os casos ficaram sem explicação ou as autoridades acabaram encontrando alguns bodes expiatórios para assumir a culpa, como ocorreu no julgamento pelo assassinato do opositor Boris Nemtsov. A última morte sem explicação convincente foi a de Alexei Navalny em uma prisão na Sibéria, tempos depois de uma tentativa comprovada de envenenamento.
O governo Putin é mestre do ilusionismo político. No caso do ataque terrorista nos arredores de Moscou, provavelmente nunca se saberá a verdade completa. Não importa quem é o verdadeiro culpado. Putin vai por a culpa na Ucrânia de qualquer jeito.