A guerra deflagrada na última semana na Ucrânia por obra do presidente russo Vladimir Putin transformou os internacionalistas — estudiosos das relações internacionais e de economia global — em figuras onipresentes no noticiário brasileiro. Quase 24 horas por dia desde quinta-feira (24), esses especialistas comentam e analisam as estratégias militares, as razões para o conflito e os cálculos geopolíticos dos principais líderes envolvidos. A questão central que se colocou é se Putin tinha motivos para invadir a Ucrânia, como forma de se defender do avanço da Otan (aliança militar ocidental), ou se os europeus e os americanos é que estão certos em pintar Putin como um governante com planos imperialistas e expansionistas. Mas quase ninguém dedicou um pouco mais de tempo para responder à pergunta que realmente importa: o que querem os ucranianos?
As análises que predominaram nos últimos dias ignoram esse ponto. Tratam o conflito como se os civis ucranianos fossem vítimas passivas, sem vontade própria, sem capacidade de tomar o destino do país em suas mãos. Como se fossem meros joguetes dos políticos que dão as cartas, de potências ocidentais que querem levar suas armas até os portões da Rússia, em provocação ao ocupante do Kremlin, ou de corruptos locais mancomunados com líderes europeus ou russos.
Essas análises tratam das origens do conflito como se a única coisa que importasse fossem os cálculos políticos e estratégicos de figuras como Putin, Joe Biden, Xi Jinping, governantes europeus, etc.
Como se a tentativa da Ucrânia de aderir à Otan fosse uma veleidade de um comediante-presidente (Volodymyr Zelensky) ou o resultado da pressão dos Estados Unidos e da Europa, em um caro erro estratégico.
Sim, é verdade que a maioria dos analistas reforça a imoralidade e ilegalidade da agressão militar russa à Ucrânia. Mas mesmo quando o fazem, realçam os aspectos geopolíticos que estão em jogo, o desejo de Putin de recuperar sua esfera de influência no Leste Europeu e os planos da China de substituição da atual ordem pós-Guerra Fria por uma nova ordem multipolar — em que o modelo de democracia ocidental é relegado a potências em declínio e em que regimes ditatoriais sejam aceitos como legítimos.
Os analistas, porém, raramente encaram a pergunta do que querem os ucranianos e ignoram o quanto isso também ajudou definir o conflito.
A resposta é que os ucranianos, em sua maioria, estão há anos se afastando da Rússia e almejando uma aproximação com a Europa Ocidental. Eles não negam seus vínculos culturais, linguísticos e históricos com a Rússia, mas vêm consolidando, desde que se tornaram um Estado independente, em 1991, uma identidade nacional forte — e cada vez mais associada ao sentimento de pertencimento europeu.
Em 2013, quando o presidente ucraniano Viktor Yanukóvytch, uma marionete de Putin, decidiu jogar no lixo um acordo de livre comércio de seu país com a União Europeia, os ucranianos tomaram a Praça Maidan, na capital Kiev, aos milhares, gritando: "Nós somos Europa."
A repressão que se seguiu foi brutal, com centenas de mortes, e durou meses, ao final dos quais Yanukóvytch botou o rabo entre as pernas e fugiu na calada da noite para Moscou.
Putin, então, invadiu e anexou a Península da Crimeia e deu início à guerra separatista no leste da Ucrânia. Esses atos de violação da soberania do país apenas exacerbaram o desejo dos ucranianos de se distanciar da Rússia e de se aproximar do Ocidente.
É o que mostram claramente as pesquisas de opinião ucranianas. Em novembro de 2013, mesmo em meio à repressão ao movimento da Praça Maidan, apenas 10% dos ucranianos diziam ter uma atitude negativa em relação à Rússia. Em maio de 2014, após a invasão da Crimeia, esse índice havia aumentado para 34%.
Em fevereiro do ano passado, a proporção de ucranianos que tinham uma visão ruim ou péssima da Rússia chegou a 42%. Os dados são do Instituto Internacional de Sociologia de Kiev. Não seria nem preciso dizer que, se a pesquisa fosse feita hoje, esse índice estaria na estratosfera.
Nos últimos dias, vimos alguns petistas e bolsonaristas unindo-se no argumento de que Putin invadiu a Ucrânia como uma reação à ameaça dos planos da Otan de expandir-se para países da sua antiga esfera de influência. Trata-se de uma tentativa de justificar os atos de Putin que ignora a vontade do povo ucraniano.
Ora, as pesquisas de opinião mostram que foram as próprias intervenções de Putin na Ucrânia, seja de cunho militar, seja na tentativa de manipular a política local, que empurraram os ucranianos para a Otan, em busca de uma proteção contra o agressor ao leste.
Em maio de 2014 (pouco depois da invasão da Crimeia, portanto), 31% dos ucranianos concordavam com a ideia de que seu país se tornasse membro da Otan. Em janeiro de 2021, essa proporção já havia aumentado para 56%. Ou seja, a maioria absoluta da população ucraniana desejava proteger-se da Rússia sob o escudo da aliança militar liderada pelos Estados Unidos.
A alta mais acentuada nesse índice se deu a partir de 2019, coincidindo com um ano em que Volodymyr Zelensky foi eleito com esmagadores 73% dos votos. Foi uma eleição marcada pela tentativa fracassada da Rússia de interferir no resultado em favor de candidatos pró-Putin.
Zelensky não é, ou pelo menos não era antes de a guerra começar, um presidente popular. A aprovação do seu governo não chegava a um terço dos ucranianos. Ainda assim, segundo as últimas pesquisas de intenção de voto, ele venceria todos os cenários para uma disputa à reeleição. Os ucranianos não viam melhor opção. A sua legitimidade como representante dos ucranianos, portanto, independente de todos os erros que ele possa ter cometido ou está cometendo, é inegável.
E quanto ao apoio que Putin diz ter na Ucrânia, principalmente da população minoritária que se identifica como russa? É bem menor do que ele afirma.
Segundo o último censo disponível, os russos étnicos representam quase 18% da população da Ucrânia. Apesar disso, em uma pesquisa divulgada na semana passada pela CNN americana, apenas 13% dos ucranianos consideram justificável que a Rússia empregue a força para evitar que a Ucrânia entre para a Otan.
Ou seja, uma invasão russa não tem o apoio total nem mesmo entre a minoria ucraniana que se identifica como russa — e que, segundo afirmou falsamente Putin, precisa ser protegida pois estaria sofrendo "genocídio".
A maioria dos ucranianos também não concorda com a afirmação de Putin de que russos e ucranianos são "um único povo". Apenas 28% dos entrevistados responderam afirmativamente a essa ideia.
E tem mais: o expansionismo territorial de Putin não tem o apoio da maioria dos ucranianos nem mesmo nas regiões com alta concentração de russos étnicos. Na região separatista do Donbas, apenas 18% dos entrevistados concordam com a anexação da Ucrânia pela Rússia. No sul da Ucrânia, o que inclui a Península da Crimeia, a proporção é de 16%. Na média nacional, essa ideia é apoiada por apenas 9% dos entrevistados, segundo a pesquisa encomendada pela CNN.
Esses números, somados à crescente atitude negativa dos ucranianos em relação à Rússia nos últimos anos, ajudam a entender a potencial disposição da população de resistir à invasão em curso.
Segundo uma pesquisa feita há duas semanas pelo Instituto Internacional de Sociologia de Kiev, 37,3% dos adultos ucranianos disseram estar dispostos a pegar em armas contra os invasores. No levantamento anterior, em dezembro, 33,3% diziam estar dispostos a fazer parte de uma resistência armada.
O instituto também perguntou sobre a intenção dos ucranianos de fazer resistência civil (protestos, boicote, sabotagem, greves e desobediência às ordens do invasor). Nesse caso, a adesão seria de 25% dos entrevistados, um aumento de 3 pontos percentuais em relação a dezembro.
No total, somando os que se dizem dispostos a resistir a uma invasão russa de um jeito ou de outro, com ou sem armas, conclui-se que 57,5% dos ucranianos pretendem agir para proteger seu país.
Isso pode não ser o bastante para definir o desfecho dessa guerra. Mas serve para fazer um alerta: aqueles que analisam o conflito na Ucrânia, com suas causas e desdobramentos, apenas olhando para o que acontece nos gabinetes governamentais e nas salas de diplomatas, erram redondamente.
O que Putin está fazendo é uma violação flagrante da vontade da maioria do povo ucraniano e não há justificativa para os seus crimes.
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