A proposta de emenda à Constituição (PEC) que procura regular a prisão de parlamentares, que ficou conhecida como PEC da Imunidade para seus defensores e "PEC da Impunidade" para os opositores, não foi a última malandragem de Arthur Lira, presidente da Câmara dos Deputados, e de seus aliados do centrão, para blindar políticos de serem punidos quando cometem crimes.
Por que "malandragem"? Ora, a PEC nasceu tendo como desculpa evitar situações como a prisão do deputado Daniel Silveira (PSL-RJ), em decisão ilegal do Supremo Tribunal Federal (STF). O ministro Alexandre de Moraes determinou a prisão em flagrante por crime inafiançável de Silveira, que havia divulgado um vídeo ultrajante atentando contra a democracia e difamando integrantes da suprema corte.
O flagrante foi questionado por diversos juristas, pois baseava-se no argumento de que a permanência do vídeo online configurava uma continuidade do crime. Uma justificativa surreal, que abre precedente perigoso para qualquer um que queira se expressar na internet — onde praticamente tudo fica para sempre, até opiniões que já foram abandonadas por seus autores.
A Câmara dos Deputados poderia ter votado para derrubar a prisão de Daniel Silveira. Não para endossar seus atos, mas para se posicionar contra a decisão autoritária do STF.
Os deputados poderiam ter estabelecido esse limite entre os poderes, mas não o fez. A maioria votou por entregar a cabeça de Silveira numa bandeja para a Justiça, em articulação feita por Lira com as lideranças dos partidos e que contou com o silêncio cúmplice do presidente Jair Bolsonaro, de quem Silveira era fiel apoiador.
Aí entra a malandragem de Lira. Como ele próprio admitiu, o acordo para manter a prisão de Daniel Silveira passava pelo compromisso de, em seguida, votar a PEC que tornaria mais difícil a prisão de parlamentares — sem sequer cumprir os ritos normais da Casa, como uma análise cuidadosa na Comissão de Constituição e Justiça.
“Eu quero deixar claro que nós não teríamos a votação de sexta-feira passada [no dia 19, que manteve a prisão do deputado Daniel Silveira] se não houvesse o encaminhamento desta saída constitucional. Nós não teríamos o resultado que esta Casa deu, cortando na própria carne, se nós não tivéssemos esse acordo”, disse Arthur Lira na sessão desta sexta-feira (26), em que a oposição conseguiu evitar que a PEC fosse votada, obrigando-o a retirá-la da pauta e a colocá-la em tramitação normal.
A tentativa de votar, a toque de caixa, uma mudança na Constituição que daria novos privilégios a políticos encrencados com a lei foi um tapa na cara dos cidadãos de um país que vive o pior momento da pandemia do novo coronavírus e o índice mais alto de desemprego desde 2012.
A prioridade deveria ser discutir e votar medidas para facilitar a compra de vacinas e para encontrar uma saída fiscal para viabilizar a aprovação de um novo auxílio emergencial.
A motivação da PEC da Imunidade, a tentativa de mudar a Constituição como quem muda de roupa, atropelando prioridades, e o timing do projeto indicam que esta não será a última malandragem de Lira e do centrão.
Podemos esperar deles novas tentativas de blindagem, de manobras para ficarem fora do alcance da lei.
A pauta anticorrupção, promessa de campanha de Bolsonaro, praticamente não avançou nos últimos dois anos. E dificilmente avançará depois que o presidente fez o acordo com o centrão. Arthur Lira, nunca é demais lembrar, é réu por corrupção em dois processos que correm no STF.
Um exemplo de nova malandragem de Lira que pode estar por vir é a que ameaça a Lei da Ficha Limpa. Aprovada em 2010, ela proíbe que um político com o mandato cassado ou condenado por qualquer crime, ainda que caiba recurso, se candidate a um cargo eletivo durante oito anos.
É essa lei que impede, por exemplo, o ex-presidente Lula de ser candidato.
Pois em dezembro do ano passado, quando fazia campanha para a presidência da Câmara, Arthur Lira andou prometendo a deputados de partidos de esquerda que, caso obtivesse os votos deles, colocaria em votação alterações na Lei da Ficha Limpa. Mudanças essas, é claro, destinadas a esvaziar a lei, ou seja, deixá-la mais branda.
Na ocasião, Lira negou que estivesse prometendo apoio às mudanças na Lei da Ficha Limpa. Agora que já ocupa a presidência da Casa, porém, a retórica é outra. O tema estava na PEC da Imunidade e acabou sendo retirado do texto. Mas Lira já deixou claro que voltará a ser discutido "em momento adequado".
Arthur Lira diz que é preciso "corrigir distorções" e "excessos" na Lei da Ficha Limpa. Mas não é justamente rigor que se espera de uma lei que tem por propósito evitar que corruptos e outras categorias de criminosos sejam eleitos vereadores, prefeitos, deputados, senadores, governadores e presidente?
Enquanto isso, outras leis importantes para evitar a impunidade de políticos, como a que pretende extinguir o foro privilegiado para crimes comuns, tramitam a passos de tartaruga do Congresso Nacional.
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