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O presidente Jair Bolsonaro (PL).| Foto: Isac Nóbrega/PR.

A campanha de Jair Bolsonaro à reeleição aposta a maior parte de suas fichas na ideia de superioridade moral em relação ao adversário, o ex-presidente Lula. Para além do histórico de corrupção e de presidiário, o petista é apresentado como abortista, contra a família, contra os cristãos e a favor das drogas, entre outras posições que atentam contra a moralidade da sociedade brasileira.

A maior parte das acusações contra a moralidade é falsa. Não há nada que indique que Lula pretenda perseguir cristãos, por exemplo. O ditador nicaraguense Daniel Ortega é amigo de Lula e persegue católicos? Sim, é verdade. Mas isso não significa que o brasileiro vai fazer a mesma coisa. O presidente Jair Bolsonaro considera-se aliado da monarquia da Arábia Saudita e até chamou o príncipe herdeiro e primeiro-ministro de lá, Mohammed bin Salman, de "irmão". Mas isso não significa que Bolsonaro pretende matar jornalistas opositores e esquartejá-los dentro de embaixadas, como fez o regime saudita controlado por bin Salman.

A campanha de Bolsonaro nem precisa fazer acusações diretas ao petista em sua exploração do temor da perda da moralidade por parte dos eleitores brasileiros. Basta espalhar o pânico em cima da ideia de uma suposta degradação moral que avança sorrateiramente, com a conivência de forças ocultas, nem sempre bem explicadas, mas de alguma forma associada à esquerda.

Foi, ao que tudo indica, o que fez a ex-ministra e senadora eleita Damares Alves, na semana passada. Damares falou que tinha conhecimento de um esquema de tráfico humano para exploração de crianças, que envolvia tortura com dentes arrancados e alimentação pastosa para a prática forçada de sexo. Disse que tinha até fotos das atrocidades. E que quando Bolsonaro mandou investigar os casos, "o inferno se levantou".

O problema é que não existem as tais evidências das mutilações de crianças para exploração sexual. Existem, sim, investigações sobre pedofilia, exploração de menores e outros crimes. Mas o Ministério Público do Pará informou que, de 100 mil casos de exploração sexual de crianças e adolescentes investigados nas últimas décadas, nenhum tem as características descritas de ex-ministra, que se viu obrigada a mudar sua versão da história. Em vez de evidências, ela passou a dizer que ouviu os relatos "nas ruas". Se é assim, então ela estava basicamente ajudando a disseminar boatos para associá-los, de maneira torta, sub-reptícia, à oposição política contra Bolsonaro.

Em seguida, foi a vez de Bolsonaro cair na armadilha da moralidade como arma eleitoreira. Em entrevista agora censurada a um podcast, ele falou mais uma vez sobre o risco de o Brasil virar uma Venezuela e, para ilustrar o perigo, contou que, durante um passeio pela periferia do Distrito Federal, encontrou meninas venezuelanas arrumadas, na sua interpretação, "para ganhar a vida", sugerindo que eram exploradas sexualmente.

"Parei a moto numa esquina, tirei o capacete e olhei umas menininhas, três, quatro, bonitas; de 14, 15 anos, arrumadinhas num sábado numa comunidade. E vi que eram meio parecidas. Pintou um clima, voltei, 'posso entrar na tua casa?' Entrei. Tinha umas 15, 20 meninas, sábado de manhã, se arrumando — todas venezuelanas. E eu pergunto: meninas bonitinhas, 14, 15 anos se arrumando num sábado para quê? Ganhar a vida. Você quer isso para a tua filha, que está nos ouvindo aqui agora? E como chegou neste ponto? Escolhas erradas."

A declaração não foi tirada de contexto, como foi feito, por exemplo, em vídeo da campanha petista com uma fala de Bolsonaro sobre a possibilidade de comer carne humana. É exatamente o que se lê acima: para falar sobre a miséria dos venezuelanos, que se viram obrigados a fugir da ditadura chavista, Bolsonaro contou sobre uma visita que fez a uma casa na periferia do Distrito Federal, em abril de 2021, onde encontrou meninas de 14 e 15 anos, com quem sentiu que "pintou um clima". Todo mundo sabe o que significa "pintou um clima". Em todas acepções da expressão, há um cunho romântico/sexual.

Há duas hipóteses para esse episódio. A primeira é que tudo aconteceu exatamente como Bolsonaro descreveu no podcast. E aí é muito, muito grave, porque o presidente sentiu que "pintou um clima" entre ele e meninas de 14 ou 15 anos que, na sua visão, estavam arrumadas para a prostituição. E também porque, se ele achou que estava diante de uma situação de exploração sexual de menores, deveria ter denunciado o fato às autoridades competentes para averiguação — o que, segundo consta, não foi feito.

A segunda hipótese é a de que Bolsonaro fez um relato fantasioso do episódio, com o intuito de acrescentar o elemento da pedofilia ao espantalho de moralidade antipetista (dentro da lógica de equiparar o adversário ao regime chavista). Não bastava falar de refugiadas venezuelanas em situação de pobreza, também precisava acrescentar, falsamente, que estavam sendo prostituídas. E isso também é grave pois revela o presidente mentindo e expondo indevidamente as meninas venezuelanas.

O mais provável é que a segunda hipótese seja a verdadeira. Isso porque a história de que as meninas eram exploradas sexualmente já foi desmentida por algumas das próprias venezuelanas que estavam na casa no dia da visita surpresa do presidente, por amigos e vizinhos delas e por uma cabeleireira que, naquela ocasião, havia levado alunos do Centro Técnico de Treinamento Underground da Beleza, de Paranoá, para treinar as técnicas de graça na residência das venezuelanas, como parte de um projeto social. Ou seja, as meninas estavam tendo um dia de "beleza" não para se arrumar para "ganhar a vida", como afirmou o presidente, mas como parte de uma ação social para valorizar a autoestima de pessoas humildes.

Além disso, o próprio presidente mudou sua versão sobre o episódio, eliminando o comentário sobre "pintar um clima" e sobre "ganhar a vida". Ele agora se vê injustamente acusado de pedofilia. E voltou para a versão anterior da história, que foi objeto de uma live dele próprio na ocasião do ocorrido, em que nada menciona sobre "exploração sexual".

Em sua cruzada para espalhar o pânico do risco à moralidade nacional, associando esse perigo ao contexto eleitoral, à sua "guerra contra mal", Bolsonaro chegou ao ponto de criar novas versões, com detalhes sórdidos, sobre fatos que ele já relatou ou explorou de forma completamente diferente no passado. É grave o suficiente. Não precisava nem ter "pintado um clima".

Não é Mito. É mitomania.

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