O mundo não é mais o mesmo de quando Jair Bolsonaro assumiu a presidência do Brasil e decidiu entregar a condução da política externa à tríade de discípulos de Olavo de Carvalho formada por seu filho, o deputado federal Eduardo Bolsonaro, pelo assessor especial Filipe Martins e pelo chanceler Ernesto Araújo. Assim como a pandemia do novo coronavírus transformou o Bolsonaro meritocrata em um Bolsonaro assistencialista e obrigou o austero Paulo Guedes, ministro da Economia, a abrir os cofres públicos para a gastança emergencial, também provocará mudanças profundas no jogo internacional que vão exigir um ajuste de rumos na política externa bolsonarista.
A política externa bolsonarista até agora caracterizou-se por quatro pilares de atuação. O primeiro é o alinhamento ao governo do presidente Donald Trump, nos Estados Unidos, e a outros movimentos nacionalistas ao redor do mundo. O segundo é a postura de atrito com regimes ditos "comunistas", como a Venezuela e a China. O terceiro é a retórica contra o multilateralismo e a cooperação global, o que se reflete, por exemplo, no enfraquecimento do Brasil como liderança na pauta da preservação ambiental. O quarto é a defesa de uma agenda conservadora em instâncias internacionais, o que tem levado o Brasil a votar junto com países islâmicos em questões como direitos sexuais e reprodutivos.
Os três primeiros pilares atrapalham a ala pragmática do governo Bolsonaro, pressionada por setores econômicos do Brasil com forte presença internacional. Os interesses desses grupos exportadores ou dependentes de investimentos externos são representados em ministérios como os da Agricultura, de Tereza Cristina, e da Infraestrutura, de Tarcísio de Freitas. Para esses setores, o alinhamento automático com os Estados Unidos só compensa se houver vantagens comerciais (que não ocorreram) e não atrapalhe negócios com outros países (como esteve prestes a acontecer em diversos momentos). Além disso, as declarações que irritam os chineses põem em risco o maior mercado externo do agronegócio brasileiro e a imagem de destruidor da natureza afasta investidores.
A ideologia se sobrepôs ao pragmatismo na formulação da política externa bolsonarista porque ela atende à clientela eleitoral do presidente. Ou seja, sob Bolsonaro, há uma tensão entre os interesses externos de setores econômicos que apoiam o governo, como o agronegócio, e a visão de mundo da base mais ampla do bolsonarismo. Assim, comprar briga com a China agrada o eleitor mais ideológico de Bolsonaro, mas pode ser ruim no médio e longo prazo para o empresário do setor agroexportador que apoia o presidente.
Charles F. Hermann, um dos principais teóricos americanos em relações internacionais da atualidade, escreveu que são quatro os fatores capazes de levar a mudanças profundas na política externa de um país.
O primeiro é uma alteração na liderança do país, seja pela troca de governo, seja pela mudança de postura do governante. Neste segundo caso, o líder de um país pode decidir fazer uma correção de rumo de sua política externa por convicção própria ou porque algo mudou em sua percepção dos problemas externos. Não é o que está acontecendo com Bolsonaro.
A segunda fonte possível de mudança em política externa encontra-se no nível da burocracia estatal. A perda de influência ou uma mudança de postura da tríade Eduardo Bolsonaro-Filipe Martins-Ernesto Araújo, por exemplo, poderia reverter o rumo da política externa adotado até agora. Não há indícios de seja esse o caso.
A terceira fonte de mudança é a reestruturação doméstica, ou seja, modificações no segmento da sociedade no qual o governo se sustenta politicamente. Mas tampouco há indícios que de isso esteja acontecendo. Ao contrário, pressionado pela crise política e pelo cerco judicial a seus aliados (nos inquéritos do STF) e à integrantes de sua família (no caso Queiroz), Bolsonaro tende a reforçar sua base eleitoral mais fiel — e a política externa é um dos instrumentos para isso.
O quarto fator capaz de provocar uma alteração de rumos significativa na política externa é a ocorrência de um choque externo, que Hermann definiu como "evento internacional dramático". A pandemia do novo coronavírus é, sem dúvida, um desses eventos.
Entre as transformações na conjuntura internacional que a pandemia está desencadeando ou pode desencadear podemos citar o reequilíbrio de forças entre as potências, com a China tentando aproveitar o momento para conquistar terreno e influência; a recessão global e a maior dificuldade de atrair investimentos para países emergentes como o Brasil; a renovação da preocupação com temas que dizem respeito à sobrevivência de longo prazo da humanidade, como a saúde global e a preservação do meio ambiente; e a possível interrupção do ciclo nacionalista nos Estados Unidos.
Algumas dessas transformações são dadas como certas, como a econômica, que afetará os esforços exportadores e de atração de investimentos do Brasil.
Outras ainda terão contornos mais definidos nos próximos anos ou meses. O futuro político dos Estados Unidos é uma delas. As pesquisas de intenção de voto, por enquanto, indicam que Trump terá uma disputa duríssima pela reeleição este ano — em grande medida por causa das insatisfações com a maneira como ele lidou com a pandemia nos Estados Unidos. Sem Trump, os formuladores da política externa bolsonarista terão de rever o alinhamento automático com os Estados Unidos.
O choque externo da pandemia pode obrigar Bolsonaro a dar mais espaço para a ala pragmática do governo na definição do posicionamento internacional do Brasil. E isso pode ser bom.
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