O presidente Lula desembarcou neste domingo (4) em Santiago, no Chile, para uma visita de dois dias ao país mais próspero da América do Sul. A viagem, que inclui encontros de Lula com o presidente Gabriel Boric, já estava prevista para este ano, mas havia sido adiada por causa das enchentes no Rio Grande do Sul, em maio. Além da assinatura dos costumeiros tratados e acordos bilaterais, um dos temas inevitáveis no encontro de Lula com Boric é o desenrolar da farsa eleitoral na Venezuela.
Os dois tiveram posturas distintas em relação ao assunto. Boric, logo no dia seguinte à votação na Venezuela, na semana passada, disse que a declarada vitória de Nicolás Maduro era difícil de acreditar. A postura oficial do governo brasileiro foi de esperar — e espera até agora — que o órgão eleitoral venezuelano divulgue as atas que comprovem a suposta vitória de Maduro. Lula, porém, fez declarações que favorecem a posição de Maduro, enquanto o seu partido, o PT, divulgou uma nota que despreza os indícios já apresentados pela oposição de que houve fraude.
Não é a primeira vez que Boric e Lula divergem em questões de política externa. Boric, por exemplo, é crítico da invasão da Ucrânia pela Rússia, enquanto Lula é condescendente com a agressão contra a soberania de um país vizinho e com a violação da lei internacional pelo ditador russo Vladimir Putin. Lula até mesmo se achou no direito de dar um puxão de orelha em Boric por sua declaração de repúdio à Rússia. Atribuiu o posicionamento do chileno à inexperiência, já que Boric é bem mais jovem.
Ele ainda vive a ilusão de que, como presidente do maior país da América do Sul, tem a missão natural de liderar a esquerda na região
Na verdade, a questão é outra. Boric, egresso do movimento estudantil chileno, representa um tipo de esquerda diferente da de Lula. Boric trilha um caminho semelhante ao da esquerda e da centro-esquerda europeias, que defendem as chamadas pautas progressistas, mas procura se afastar de vertentes autoritárias. Trata-se da esquerda tradicional europeia, que procura se distanciar de emergentes legendas mais radicais, como o Podemos, da Espanha, ou a Nova Frente Popular, da França.
Quando foi eleito presidente, Boric era considerado de uma vertente mais radical do que os presidentes socialistas anteriores que o Chile já teve, como Michelle Bachelet e Ricardo Lagos, forjados na necessidade pela busca do consenso do sistema político chileno pós-ditadura. Mas a realidade do cargo se impôs, em especial pela derrota do seu projeto prioritário, o de reescrever a constituição.
Lula, por sua vez, é apegado ao esquerdismo latino-americano nascido das cinzas do colapso da União Soviética e ideologicamente dependente do discurso castrista e anti-imperialista. Mais do que isso, ele ainda vive a ilusão de que, como presidente do maior país da América do Sul, tem a missão natural de liderar a esquerda na região. Boric, presidente de um país pequeno como o Chile, não tem essa pretensão.
Isso também lhe permite lidar com a polarização política. No ano que vem termina o mandato presidencial de Boric. Ao contrário do que acontece no Brasil, no Chile não há a possibilidade de um presidente buscar uma reeleição consecutiva. O grupo político de Boric está numa posição delicada, com a ascensão da direita de José Antonio Kast.
Kast pode vir a ser o próximo presidente do Chile. Boric procura se apresentar mais ao centro do espectro político para facilitar uma mobilização de votos contrários a Kast. Em alguns temas de política externa, como nas críticas a Israel pela condução da guerra na Faixa de Gaza, ele se aproxima da posição lulista. Mas, nas polêmicas regionais, adota uma postura mais moderada e avessa a ditaduras, sejam de esquerda ou de direita. Ou seja, ele busca um posicionamento mais coerente do que o de Lula, que afirma ser um democrata e defensor dos direitos humanos, mas passa pano para a ditadura chavista. Vai ser importante que Lula escute a visão de Boric sobre a Venezuela, ainda que os dois não cheguem a nenhum consenso sobre isso.
Dinossauros costumam ter visões míopes do futuro.
O que Bolsonaro e a direita podem aprender com a vitória de Trump nos EUA
Perda de contato com a classe trabalhadora arruína democratas e acende alerta para petistas
O aumento dos juros e a chiadeira da esquerda; ouça o podcast
BC dá “puxão de orelha” no governo Lula e cobra compromisso com ajuste fiscal
Inteligência americana pode ter colaborado com governo brasileiro em casos de censura no Brasil
Lula encontra brecha na catástrofe gaúcha e mira nas eleições de 2026
Barroso adota “política do pensamento” e reclama de liberdade de expressão na internet
Paulo Pimenta: O Salvador Apolítico das Enchentes no RS