Para algumas pessoas, é muito difícil se conformar com o ritmo alucinante com que os fatos mudam no mundo contemporâneo. Vivemos uma era disruptiva, repetia-se à exaustão em palestras de autoajuda corporativa antes mesmo de chegar essa nova e terrível doença respiratória. O novo coronavírus aumentou a percepção de incertezas — científicas, sociais, econômicas e, no caso do Brasil, políticas — e de quebra acelerada de paradigmas. Mudam muito rápido, esses fatos da pandemia.
Em sua live semanal no Facebook, na última quinta-feira (11), o presidente Jair Bolsonaro estimulou os cidadãos brasileiros a entrar nos hospitais dedicados ao tratamento de pacientes com covid-19 para colher provas em vídeo de que não estão tão cheios como indicam as estatísticas que vêm sendo divulgadas. Bolsonaro considera que os números de mortos e infectados pelo novo coronavírus são superdimensionados — e chegou a acusar seu ex-ministro da Saúde, Luiz Henrique Mandetta (DEM), de ter contribuído para "inflar" os dados. Não foi a primeira vez que o presidente colocou em dúvida os fatos da pandemia.
Bolsonaro estava convencido, no início da pandemia, de que a covid-19 não passava de uma "gripezinha" e confiava na previsão de seu ex-ministro da Cidadania, Osmar Terra (MDB), de que os óbitos pela doença no Brasil não passariam de 2.100. Naquele momento, havia previsões para todos os gostos; das mais otimistas, como a de Terra, até as mais pessimistas (apocalípticas, como preferem alguns), como a do Imperial College de Londres. Menos de dois meses depois, os fatos vão se consolidando e provando que de inofensivo o novo vírus não tem nada.
Mas por que é tão difícil aceitar que as estimativas otimistas estavam equivocadas e que os fatos são outros? Como justificar uma desconfiança tão grande a ponto de arriscar a própria saúde e a de pacientes e funcionários de hospitais para invadir enfermarias e filmar leitos supostamente vazios?
O biólogo computacional e matemático americano Samuel Arbesman publicou um livro, em 2012, que procura compreender a durabilidade dos fatos e por que as pessoas têm mais facilidade para aceitar as mudanças de alguns deles em detrimento de outros. Em The Half-Life of Facts: Why Everything We Know Has an Expiration Date ("A Meia-Vida dos Fatos: Por Que Tudo Que Nós Sabemos Tem uma Data de Expiração", sem publicação em português), Arbesman identifica três categorias de fatos, de acordo com o tempo que eles levam para mudar.
Há os fatos que mudam muito rapidamente, ou seja, que estão em constante transformação. Entre eles estão, por exemplo, as oscilações na bolsa de valores e as variações climáticas. As pessoas se conformam mais facilmente com fatos que mudam constantemente. Aceita-se com naturalidade que uma manhã fria e cinzenta dê lugar a uma tarde de sol ou que, após um dia de alta na bolsa, o mercado abra com queda nos negócios.
No outro extremo estão os fatos que mudam muito lentamente, depois de vários séculos ou milênios, ou que nunca mudam. Entre eles estão o número de continentes no Planeta ou a quantidade de dedos que os seres humanos têm nas mãos e nos pés. São fatos tão duradouros e consolidados que tornam-se inquestionáveis.
Entre essas duas categorias estão os fatos que mudam nem tão rápido, nem tão devagar. São aqueles que modificam-se ao longo das décadas (a exemplo dos costumes sociais), dos anos (se comer ovo faz mal ou não para a saúde) ou de meses (como os conhecimentos a respeito do novo coronavírus). Fatos assim são mais difíceis de assimilar.
Conflitos de gerações encaixam-se nessa categoria, que Arbesman chama de "mesofatos". Por exemplo, costuma ser mais difícil para alguém que se tornou adulto em uma época em que as pessoas quase não se divorciavam aceitar e entender as novas configurações familiares da atualidade. A sensação que se tem quando os "mesofatos" mudam — quando há modificações na sociedade em que vivemos, por exemplo — é de que perdemos um pouco o controle sobre a nossa vida.
A pandemia do novo coronavírus provocou grandes mudanças em fatos consolidados ao longo de décadas e acelerou outras, já em curso. São transformações nas relações pessoais e de trabalho, nos cuidados de higiene, nos paradigmas econômicos e do papel do Estado, nos métodos de ensino e até na forma de fazer ciência, pela primeira vez sendo obrigada a produzir conhecimento em tempo real e sob escrutínio constante do público não acadêmico.
A adaptação é difícil para todos, mas, para alguns, aceitar os novos fatos é mais desafiador. Para quem desconfia até mesmo de fatos consolidados há séculos, como o de que a Terra é esférica e não plana, é praticamente impossível.
A boa notícia é que as pessoas com dificuldade de aceitar os fatos da pandemia são uma minoria. Em média, oito em cada dez brasileiros confiam nas informações sobre a pandemia veiculadas por jornais televisivos (a proporção é de sete em cada dez no caso dos sites de notícias), segundo pesquisa Datafolha de abril.
Os desconfiados parecem se concentrar no núcleo de cerca de 30% dos brasileiros que aprovam a gestão de Bolsonaro. Por conveniência política ou por sua própria dificuldade em se adaptar à mudança dos fatos, é a eles que o presidente apela para colocar suas vidas em risco ao invadir hospitais para provar uma mentira que não existe.
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