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Em 2002, no ano do Centenário do ex-presidente Juscelino Kubitschek, Hugo Chávez veio ao Brasil agradecer ao presidente Fernando Henrique Cardoso por seu papel essencial na reação internacional ao golpe fracassado que afastou momentaneamente o venezuelano da cadeira presidencial.
Em 11 de abril daquele ano, na sequência de uma longa greve de funcionários da PDVSA, a estatal de petróleo venezuelano, motivada por interferências do governo na empresa, um grande protesto em Caracas foi convocado por um confederação de sindicatos de trabalhadores e pela Fedecámeras, uma federação empresarial, contra medidas autoritárias e políticas econômicas desastrosas de Chávez.
Chávez sempre teve tendências autoritárias, mas foi o golpe fracassado de 2002 que deu a ele as condições ideais e a narrativa política para a construção da ditadura.
A repressão policial aos protestos resultou em 20 mortos e, no dia seguinte, Chávez foi destituído do cargo por militares e substituído pelo presidente da Fedecámeras. O golpe tinha o apoio tácito do governo americano.
Naquele mesmo dia, representantes do Grupo do Rio, mecanismo de consulta política entre países latino-americanos, estavam reunidos na Costa Rica. O chanceler brasileiro Celso Lafer juntou assinaturas para uma declaração conjunta em condenação ao golpe. Na Declaração do Grupo do Rio Sobre a Situação na Venezuela, de 12 de abril, os governos da região condenaram "a interrupção da ordem constitucional na Venezuela".
O rápido repúdio regional liderado por Lafer e endossado por FHC neutralizou o apoio explícito dos Estados Unidos ao golpe e legitimou as reações internas na Venezuela, que ocorreram por meio de protestos populares e da atuação de militares legalistas. Chávez foi reconduzido ao cargo no mesmo dia.
O golpe fracassado fortaleceu Chávez politicamente e deu a ele a desculpa de que precisava para endurecer contra a oposição e contra a imprensa.
O venezuelano havia sido eleito democraticamente menos de quatro anos antes e, apesar do pendor autoritário de suas políticas, ainda não estava à frente de um regime que pudesse ser chamado de ditatorial. FHC e outros presidentes sul-americanos, como os dos Chile e da Argentina, tinham sido figuras importantes da luta contra as ditaduras militares em seus países e sentiam a necessidade de serem firmes na preservação dos valores democráticos.
Mas FHC sabia das tentações autoritárias do próprio Chávez: o brasileiro era ministro das Relações Exteriores quando o então coronel venezuelano tentou liderar uma quartelada militar para derrubar o presidente Carlos Andrés Perez dez anos antes, em 1992. Por isso, quando recebeu Chávez em Brasília depois do golpe fracassado de 2002, FHC tratou de aproveitar a oportunidade para dar um conselho ao venezuelano.
Celso Lafer, que testemunhou o episódio, diz que Chávez viu os grandes cartazes com o rosto de Juscelino que enfeitavam Brasília e perguntou a FHC: "Quien és este señor?" FHC respondeu que se tratava de um grande ex-presidente brasileiro que promoveu a democracia e a liberdade de imprensa e que anistiou os opositores, evitando o revanchismo. "Você deve fazer a mesma coisa", disse Fernando Henrique a Chávez.
O que ocorreu, no entanto, foi o contrário, como sabemos. O golpe fracassado fortaleceu Chávez politicamente e deu a ele a desculpa de que precisava para endurecer contra a oposição e contra a imprensa. Também aumentou a sua convicção de que precisava cooptar o apoio das Forças Armadas a qualquer custo, ao mesmo tempo em que montava a sua própria milícia popular. Pouco a pouco, Chávez foi aumentando a repressão interna, criando leis para centralizar poder e substituindo juízes e militares independentes por outros, submissos a ele.
Chávez sempre teve tendências autoritárias, mas foi o golpe fracassado de 2002 que deu a ele as condições ideais e a narrativa política para a construção da ditadura que perdura até hoje na Venezuela.
Envolvidos em atos golpistas não podem ficar impunes e as autoridades devem fazer tudo o que estiver dentro da lei para evitar que novas tentativas de ruptura da ordem se repitam. Mas a sociedade precisa ficar atenta para que as medidas adotadas para defender a democracia não ultrapassem os limites da própria democracia, justificando a normalização da censura, do desrespeito ao devido processo legal e da arbitrariedade judicial.