O presidente americano Donald Trump começou 2020 em excelente forma para conquistar a reeleição. Só nas fantasias mais criativas dos democratas se poderia imaginar que ele pudesse ser derrotado por causa do seu estilo confrontacionista, pela guerra comercial com a China ou por ter usado o cargo para pressionar um governo estrangeiro a entregar informações comprometedoras a respeito de Joe Biden, que despontava como seu provável adversário nas urnas. Trump havia acabado de superar um processo de impeachment, absolvido que foi no Senado, por esse mesmo caso de uso eleitoreiro do cargo. Tudo o que importava para a reeleição de Trump poderia ser resumido em um número: 3,5%, a taxa de desemprego nos Estados Unidos em fevereiro, a mais baixa em meio século. Bastaram alguns meses de pandemia do novo coronavírus para essa fortaleza eleitoral ruir. Ao final da história, a covid-19 derrotou Trump.
Não foi Joe Biden quem derrotou Trump. Até os eleitores democratas temem que ele seja velho demais para terminar o mandato (ele assumirá, em 20 de janeiro, aos 78 anos de idade). A história de relações impróprias com os negócios do filho, Hunter Biden, na Ucrânia não ficou totalmente explicada. O que derrotou Trump foi, ao fim e ao cabo, a pandemia e a maneira como o presidente lidou com ela.
As políticas de Trump para enfrentar a pandemia ficaram no meio caminho entre a firmeza no fechamento de fronteiras e o relaxamento nas medidas de distanciamento social. Trump insistia em dizer que a situação não era tão grave quanto os cientistas alertavam, pressionava para que os estados retomassem as atividades econômicas o quanto antes e fazia pouco caso das recomendações sanitárias dos especialistas do próprio governo, como o diretor do Instituto Nacional de Alergia e Doenças Infecciosas, Anthony Fauci. A certa altura, chegou a chamar o imunologista de "idiota".
Trump também não escutou os economistas que diziam que, com ou sem reabertura das atividades, a economia sofreria uma baque de qualquer jeito por causa da crise na saúde pública. Sem lockdown, haveria picos de novos casos e de mortes, o que de qualquer forma levaria a uma retração no consumo e à necessidade de as pessoas se trancarem em casa e de empresários cortarem funcionários.
Sem uma estratégia firme, ignorando as orientações dos cientistas e espalhando desinformação sobre a doença, Trump assistiu à taxa de desemprego quadruplicar em poucos meses. Em abril, o índice chegou a 14,7%. A estatística vem caindo desde então, chegando a 6,9% em outubro. Ainda assim, é quase o dobro da taxa de fevereiro.
O fato de a economia americana, uma locomotiva movida a moto contínuo, estar se recuperando rapidamente só mostra que, mais do que a preocupação dos americanos com o futuro dos empregos, o que mais atrapalhou os planos de reeleição de Trump foi a pandemia em si, a perda inútil de vidas, a contaminação que segue galopante ao mesmo tempo em que o presidente diz que já está acabando — quando não está.
Dois dias após a data final das eleições americanas, o país registrou o seu recorde de novos casos de contaminados por covid-19 em um único dia. Foram 116.255 novos casos na quinta-feira (5), segundo levantamento do The Covid Tracking Project, que colhe os dados divulgados pelos estados. Mais de 220.000 americanos já morreram de covid-19, 80.000 a mais do que no Brasil.
No mesmo dia em que se registrou o recorde de novos casos de covid-19, sentido o cheiro da derrota nas urnas, Trump intensificou suas acusações de fraude nas eleições, sem apresentar provas. Ocorre que, nos Estados Unidos, ao contrário do que se vê em nações mais ao sul, vidas ainda importam mais do que falsas narrativas.
O que derrotou Trump — e ele pode espernear o quanto quiser, mas não conseguirá reduzir a pó 230 anos de tradição eleitoral — não foi Biden, o picolé de chuchu americano, mas a chance desperdiçada de assumir a responsabilidade e de liderar o país em um dos momentos mais difíceis de sua história.
Com a chegada do inverno no hemisfério norte, há o risco de os índices de contaminação se acelerarem. Esse período crucial será comandado, ainda, por Trump, que deve entregar o cargo em 20 de janeiro. Não há porque acreditar que ele vá mudar de postura.
Biden anunciou neste sábado (7) que apresentará já nesta segunda-feira um comitê com doze especialistas para elaborar as medidas emergenciais que serão tomadas a partir do seu primeiro dia na Casa Branca: mais testes, mais dinheiro para equipamentos de proteção e vacinas, talvez até novos decretos para tornar máscaras e medidas de distanciamento social obrigatórias.
O que derrotou Trump, o presidente que tinha tudo para levar essas eleições? Ele mesmo.
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