Um dos únicos pontos de consenso em relação ao episódio de 8 de janeiro de 2023 em Brasília é o de que não houve apoio institucional das Forças Armadas a um golpe de Estado. Pelo lado da esmagadora maioria dos brasileiros, essa constatação é recebida com alívio (segundo recente pesquisa Quaest, 89% dos entrevistados reprovam os atos contra as sedes dos Três Poderes naquele dia). Para uma minoria que torcia para que o recém-empossado presidente Lula fosse destituído de alguma forma, porém, a não interferência das Forças Armadas foi recebida como uma decepção. Essa minoria esperava que essa interferência ocorresse como forma de colocar ordem no país e com base em uma interpretação para lá de duvidosa do artigo 142 da Constituição, como comprovam os depoimentos de muitos dos detidos por participação nos atos de vandalismo.
Essa esperança de que, no momento certo, as Forças Armadas iam intervir, alimentada ao longo dos quatro anos anteriores por ideólogos do bolsonarismo e pelo próprio Jair Bolsonaro, geralmente por meio de declarações ambíguas sobre o papel dos militares na política, foi o que incentivou a multidão de um ano atrás a agir, invadindo prédios públicos, destruindo obras de arte e outros itens do patrimônio nacional. Uma ação antipatriótica, mas que na cabeça daqueles ativistas era legítima e um gesto de salvação da pátria.
Se houver outro 8 de Janeiro, as Forças Armadas vão agir ou vão ficar novamente inertes em uma posição de ambiguidade?
Se aqueles brasileiros que refutavam a vitória eleitoral de Lula não acreditassem que os seus atos violentos iam ser acompanhados de uma resposta favorável dos militares, eles não teriam agido daquela forma, com tanta certeza de impunidade, com tanta certeza de que estavam no lado certo da história. E por que eles tiveram essa esperança? Porque os militares deram razões para eles acreditarem nisso.
Depois da derrota de Bolsonaro nas eleições de 2022, os seus apoiadores fizeram barricadas em estradas e montaram acampamento na porta dos quartéis. Fizeram isso para pedir uma atitude dos militares contra a eleição de Lula. Houve conivência das Forças Armadas para permitir que os manifestantes permanecessem nessas áreas militares. Falava-se em liberdade de manifestação. Mas alguém acredita que se os manifestantes fossem, por exemplo, petistas ou membros de sindicatos de esquerda teriam conseguido permanecer acampados lá por tanto tempo?
A resposta é que o risco de que possam, de fato, intervir não pode ser descartado.
Houve também, depois da eleição de Lula, uma nota ambígua divulgada pelas Forças Armadas, criticando tanto restrições aos direitos de manifestação da população por parte de agentes públicos (numa indireta contra o STF e autoridades estaduais), quanto a “eventuais excessos” dos manifestantes bolsonaristas.
A nota também desvendava, nas entrelinhas, que os militares ficavam envaidecidos com o fato de serem vistos como salvadores da República e que eles nada fariam para impedir que os militantes bolsonaristas permanecessem na porta dos quartéis (com base no argumento da liberdade de manifestação), mas também deixava subentendido que não haveria intervenção das Forças Armadas no processo político. Em vez disso, os militares jogavam para o Congresso Nacional a responsabilidade de resolver eventuais conflitos políticos.
Todas as grandes democracias do mundo, em seu processo de evolução e amadurecimento, reforçaram o controle político sobre os militares.
A nota das Forças Armadas deixava bem claro que os militares não pretendiam engajar-se em nenhuma aventura golpista, mas não foi assim que o texto foi recebido por uma parcela do campo bolsonarista. Muitos dos ditos pensadores ou influenciadores do bolsonarismo interpretaram e divulgaram a nota como uma reafirmação de que os militares apoiavam os manifestantes que estavam nas portas dos quartéis, e logo estavam a postos para intervir caso houvesse clamor popular.
Os fatos relatados acima já eram de conhecimento público naquela época. Hoje sabemos muito mais sobre uma suposta participação mais direta de alguns militares em conspirações golpistas nos bastidores, seja por delações, como a de Mauro Cid, ex-ajudante de ordens de Bolsonaro, seja por investigações como a que foi feita pela CPMI do 8 de Janeiro.
Se houver outro 8 de Janeiro, as Forças Armadas vão agir ou vão ficar novamente inertes em uma posição de ambiguidade? A resposta é que o risco de que possam, de fato, intervir não pode ser descartado, pois o controle civil sobre o militares no Brasil é falho e insuficiente. Todas as grandes democracias do mundo, em seu processo de evolução e amadurecimento, reforçaram o controle político sobre os militares.
Se for depender de Lula, isso não vai acontecer. O seu governo tem optado pelo apaziguamento com os militares, por não incomodá-los com uma investigação mais séria sobre a participação de alguns deles em alguma conspiração golpista. Mais ainda, Lula reforçou as concessões aos militares e age para fortalecê-los. Criou uma GLO (Garantia da Lei e da Ordem) completamente inócua para patrulhar portos e aeroportos em busca de drogas, mas que dá prestígio à Marinha e à Aeronáutica e gera a possibilidade de aumentar a verba militar. Além disso, Lula reservou um naco bem grande dos investimentos do Novo PAC (Programa de Aceleração do Crescimento) para os militares.
Lula parece acreditar que a conciliação com os militares, uma espécie de anistia velada àqueles que cogitaram sair da linha antes e durante o 8 de Janeiro, é o melhor caminho para garantir a própria continuidade no poder. Mas, no longo prazo, a questão do controle civil sobre as Forças Armadas não está resolvida.
Ao contrário do que Lula diz, a democracia brasileira não é inabalável.
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