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É perfeitamente compreensível que, para muitos cristãos, pareça inspirador que o presidente da República compareça a um evento religioso com milhares de participantes e manifeste publicamente sua fé em Deus. Valores e crenças em comum aproximam as pessoas. É mais fácil conectar-se emocionalmente com um líder do país que expõe e dá nome à sua espiritualidade. Jair Bolsonaro disse neste sábado (21), durante a Marcha para Jesus, que reuniu diversas denominações evangélicas em Curitiba (PR), ser um presidente "que acredita em Deus". Ótimo. Mas o que ele disse a seguir não tem nada de louvável.
Bolsonaro disse que no Brasil, atualmente, além de um presidente que acredita em Deus, "temos um governo que acredita em Deus". E que "só Deus me tira daquela cadeira".
A separação entre Igreja e Estado foi uma conquista da Constituição de 1891. Considerando-se que antes disso o elo oficial que existia era entre Igreja Católica e o poder imperial, isso significa que essa separação colocou formalmente todas as religiões em pé de igualdade em relação ao Estado.
A Constituição atual, de 1988, aprofundou e detalhou o caráter laico do Estado. Diz o inciso I do artigo 19 da carta: "É vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança, ressalvada, na forma da lei, a colaboração de interesse público." (Lembrando que a União é a personalidade jurídica que representa o governo federal.)
Sendo assim, o governo não pode se dizer cristão, nem islâmico, nem budista e nem mesmo ateu. Um "governo que acredita em Deus" pressupõe um governo com "relações de dependência ou aliança" com determinadas correntes religiosas em detrimento de outras. Assim como, no outro extremo, um governo ateu enseja a perseguição aos crentes, a negação da religião.
A palavra "Deus" aparece uma única vez no texto constitucional, em seu preâmbulo, quando os constituintes, apresentando-se na primeira pessoa do plural ("nós, representantes do povo"), elencam as intenções ("instituir um Estado democrático de Direito", etc) e os valores (fraternidade, pluralismo, etc) que os levaram a promulgar a Constituição, "sob a proteção de Deus".
Em 2002, Carlos Velloso, então ministro do Supremo Tribunal Federal (STF), ao julgar uma Ação Direta de Inconstitucionalidade, afirmou que o preâmbulo não constitui norma central da Constituição e que a evocação de Deus "não tem força normativa".
Pode-se afirmar que Bolsonaro às vezes confunde público com privado (de fato) e o governo com a figura dele próprio, presidente, com suas crenças e opiniões pessoais — como se ele e Estado fossem uma coisa só.
Mas espantosa, mesmo, é a sua constante evocação messiânica da ideia de que "só Deus" é capaz de tirá-lo da cadeira presidencial. Na realidade, quem tem esse poder são os eleitores brasileiros, e apenas eles. Sob a proteção de Deus, para os que Nele creem.