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O presidente boliviano, Luis Arce, e o ex-mandatário Evo Morales nas comemorações do aniversário do MAS em um estádio de futebol em Ivirgarzama, em março de 2023| Foto: Jorge Ábrego/EFE

O ex-presidente boliviano Evo Morales, o líder cocaleiro que foi aliado de primeira hora do venezuelano Hugo Chávez durante a onda bolivariana que varreu a América Latina até dez anos atrás, anda tendo as mesmas desconfianças que o deputado federal Eduardo Bolsonaro (PL-SP): que o levante militar ocorrido em La Paz na quarta-feira passada, dia 26, foi um golpe "de mentirinha" ou até um autogolpe em favor do atual presidente, Luís Arce. Essa confusão é a cara da América Latina.

Na política do subcontinente americano, nem tudo é o que parece ser. E isso exige sempre cautela ao classificar os acontecimentos. A maior parte da imprensa brasileira apressou-se para condenar o "golpe" contra o presidente Arce e, portanto, contra a "democracia" boliviana. À primeira vista, a cena de um grupo de militares tomando a Praça Murillo, cercando o palácio presidencial e tentando derrubar a porta com um blindado parecia uma inequívoca tentativa de depor o presidente. Mas como explicar as imagens do general que liderava o levante, Juan José Zúñiga, conversando cara a cara com Arce em meio à confusão e em seguida desistindo da empreitada para ser preso em seguida? E o próprio Zúñiga depois dando uma entrevista para dizer que fez tudo aquilo a mando do próprio Arce? Nenhuma das duas cenas tem muita lógica, pelo menos não sem um contexto maior do que ocorre nos bastidores da disputa por poder na Bolívia.

Quando se trata da Bolívia e de quem manda na política por lá, pode-se acreditar em qualquer coisa. E nem tudo é o que parece ser

Não faz sentido um presidente ameaçado de golpe convencer, no gogó, o golpista a dar meia volta e se entregar. E não faz sentido um general fingir um golpe, correndo risco de cair numa cilada e ser preso.

E aí entra o elemento Evo Morales para deixar a história toda ainda mais complicada. Morales foi um dos primeiros a denunciar a tal mobilização militar. Segundo ele, a intenção era prendê-lo em seguida. Depois, segundo seu próprio relato, mudou de ideia sobre o que estava acontecendo. "Inicialmente, até quarta à noite, inclusive até a manhã de quinta, eu pensava que era um golpe, mas agora estou confuso, parece um autogolpe", disse Evo neste fim de semana. Ele passou a acreditar nisso, conforme afirmou, primeiro por causa da confissão/acusação de Zúñiga, segundo porque o chefe do Estado Maior no momento do levante, Wilson Sánchez, foi em seguida nomeado comandante do Exército.

Mas a teoria de Morales vai se tornando mais inverossímil a cada nova frase. Ele disse acreditar que o objetivo de Arce com o suposto autogolpe era deixar a presidência nas mãos de uma junta militar, pois essa seria a única forma de evitar a volta do próprio Evo Morales ao poder.

Aqui cabem algumas explicações para contextualizar essa maluquice. Luís Arce foi eleito presidente com o apoio de Evo Morales. Arce foi ministro de Morales no passado. Em 2019, Morales havia tentado um quarto mandato presidencial, apesar de inconstitucional. As eleições foram marcadas por denúncias de fraude e levaram a um caos social que culminaram na renúncia de Morales e sua fuga para o exterior. Toda a cadeia sucessória renunciou. Sobrou para a senadora Jeanine Añez, que era a segunda vice-presidente da Câmara Alta boliviana. Añez governou interinamente por pouco mais de um ano, realizou eleições e entregou o cargo ao vencedor, Luís Arce, sem tropeços. Ainda assim, foi processada e condenada por suposta participação no "golpe" contra Evo Morales. Está presa desde então. Outro líder da oposição, Luis Fernando Camacho, governador da província de Santa Cruz, também foi preso. Eis a democracia boliviana.

Pois bem. A posse de Arce permitiu a Morales retornar do exílio. Ele pensou que ia dar as cartas nos bastidores, mas não foi isso que aconteceu. No ano passado, rompeu com Arce ao tentar expulsar o ex-aliado do partido MAS. A decisão foi revertida na Justiça, que ainda por cima tornou Evo Morales inelegível para um novo mandato presidencial.

Ou seja, a história de que Arce precisaria entregar o poder a uma junta militar para evitar a volta de Morales à presidência em eleição a ser realizada no ano que vem não faz o menor sentido. À rigor, Morales nem pode concorrer.

O governo de Arce vai de mal a pior. Há muitos interesses escusos em jogo, com ligações intrincadas entre os principais atores e tentáculos com o crime organizado. A disputa entre Arce e Morales tem feito aflorar denúncias de ligações entre política e narcotráfico de um lado e de outro, com pitadas de conexões militares aqui e ali.

O que é certo é que todos nessa história seriam capazes das conspirações mais estrambólicas para atingir seus objetivos. Vale lembrar que, em 2007, Evo Morales aceitou que a Venezuela de Hugo Chávez enviasse tropas e veículos militares para ajudar a reprimir protestos populares na Bolívia. Os soldados e os equipamentos foram transportados em aviões Hércules C-130 que cruzaram o espaço aéreo brasileiro, contando com a omissão do governo Lula, então em seu segundo mandato.

Quando se trata da Bolívia e de quem manda na política por lá, pode-se acreditar em qualquer coisa. E nem tudo é o que parece ser.

Conteúdo editado por:Jocelaine Santos
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