

Após dois anos de abordagem de temas aparentemente não muito polêmicos, a proposta de redação do Enem deste ano trouxe um assunto que, surpreendentemente, levantou acirradas discussões entre a população. De um lado, os que consideram a questão levantada como uma afronta, um discurso de doutrinação (feminista, de esquerda). De outro, aqueles que se assumem como feministas ou simpatizantes do movimento, que enxergam nas manifestações contrárias a perpetuação de uma forma oposta de doutrinação (machista, de direita).
No entanto, o que se deve colocar em evidência – e ao que me parece foi esta a intenção do exame – é que a violência contra a mulher, acima de qualquer discussão de ideologia política, é um fato. Um triste fato que, infelizmente, se arrasta sorrateiramente pelas mais diversas sociedades, se estendendo por diferentes épocas – como colocado pelos textos de base da prova e reafirmado pelo uso do termo “permanência”, no enunciado da questão.
Discutir a violência contra a mulher, logicamente, não exclui a importância e a necessidade de discussão de outras formas de violência que atingem outros grupos da sociedade, como crianças, negros e homossexuais. Muito menos exclui a urgência da discussão a respeito da violência nas cidades – a qual, sim, atinge principalmente os homens, por inúmeros motivos. Pelo contrário. Assumir a existência de uma violência voltada à uma população específica, abre a oportunidade para o levantamento, reflexão, discussão e percepção sobre todas as outras, e tantas outras, vítimas do mesmo mal: a crença na superioridade de determinado grupo sobre o outro, e que, por isso, tem o direito de agredir – física, psicológica e moralmente – um grupo tido como inferior.
Tão absurdo quanto um indivíduo violentar o outro, seja quem for e da forma que for, é acreditar que colocar tais situações em discussão seja doutrinação. Fatos, fotos, relatos são diariamente expostos e debatidos nas redes sociais – espaços pelos quais a grande maioria dos jovens se comunica e, consequentemente, recebem informações. Trazer essa reflexão para um outro espaço mostra a necessidade, e a crença, de que este mesmo jovem possa refletir e expor seus argumentos de forma responsável e fundamentada. Mostra que este jovem pode e deve selecionar argumentos e informações, apresentando-os com clareza e objetividade. E, sobretudo, mostra que tão importante quanto os conteúdos escolares é o desenvolvimento de um olhar crítico diante da sociedade que o cerca e do qual ele faz parte – a qual, sem dúvidas, apresenta milhares de outros problemas para discussão, mas que, por uma questão lógica, não podem ser abordados simultaneamente em um único exame.
O que não se pode fazer é, em nome da hipocrisia, não se discutir nada, não trazer à tona nenhum problema social, por existirem tantos outros que não poderão – em um mesmo momento – serem debatidos. O que não se pode é subestimar a capacidade de reflexão e posicionamento de um jovem.
Sempre é tempo de discussão, de reflexão. Sempre é tempo de abordar problemas que afligem todo e qualquer grupo. Todos os possíveis temas terão maior ou menor relevância quando pensados individualmente – sendo sempre mais graves aqueles que nos atingem diretamente. O convite a olhar determinado problema, a criar uma perspectiva, a refletir sobre outros problemas, que não diretamente ou necessariamente os seus, não pode ser encarado como doutrinação. É o oposto disso. É um estímulo a sair de uma zona de conforto, a lidar com fatos concretos e informações diversas. O que, por sua vez, exige um poder de argumentação e reflexão – sem entrar aqui nos méritos do domínio da língua e de técnicas de redação – para a defesa de um posicionamento pessoal. Isso não pode ser encarado como doutrinação. Um jovem bem informado, capaz de argumentar com seriedade e fundamentação sobre um problema que lhe é apresentado, jamais será facilmente doutrinado.
A proposta de reflexão sobre a permanência da violência contra a mulher abriu a porta para uma série de importantes discussões. Estas, quando realizadas de forma sadia, são fundamentais para que todos os lados se coloquem e sejam ouvidos, dando a oportunidade para que aqueles que estejam dispostos possam compreender os argumentos contrários aos seus – expandindo o repertório, o desenvolvimento e a divulgação de informações e opiniões. É crucial, portanto, que se tenha o direito de acesso à informação e ao espaço de reflexão e discussão, para que a formação do jovem se desenvolva de forma plena. Para que ele possa, sem doutrinação, construir sua própria visão, seus próprios argumentos.
Abordar a permanência da violência contra a mulher, como proposta de redação do Enem, não é abordar uma discussão política, enquanto ideologia de direita ou esquerda. Não se trata, especificamente, de feminismo ou machismo. Trata-se dos 5,6 mil feminicídios registrados por ano no Brasil. Trata-se dos inúmeros casos de violência doméstica, sexual, moral. Desqualificar ou invalidar um tema como este é, moralmente, tão grave quanto praticá-lo. É uma forma de negligência. É estimular que as agressões continuem acontecendo. É estimular que o agressor mantenha suas ações, sem medir as consequências ou ser impedido. É inibir a vítima de delatar seu agressor e expor o que acontece, com medo de retaliação ou ridicularização. Não se trata de sair da sala de prova levantando a bandeira de algum movimento social. Trata-se, mais do que reconhecer os índices e informações apresentadas, de colocar-se no lugar do outro que lhe foi apresentado e refletir sobre a sua situação.
Não há espaço para doutrinas, quando há reflexão.
*Artigo escrito por Francinne de Oliveira Lima Kohls, professora de Língua Portuguesa do Colégio Sion. A profissional colabora voluntariamente com o Instituto GRPCOM no blog Educação e Mídia.
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