Certa vez, quando eu ainda trabalhava como professor, trouxemos ao nosso colégio o professor e escritor Miguel Sanches Neto. Isso já faz muitos anos, acho que é coisa do século passado. Era alguma espécie de aula magna para alunos do 3º ano do Ensino Médio, e ele falaria sobre literatura e sobre essa fase da vida dos alunos, marcada por escolhas profissionais e de vida – e toda escolha profissional é uma escolha de projeto de vida, claro.
Ele usou uma expressão que me marcou e que eu sigo reiterando, inclusive para ampliá-la a outros contextos, como é a minha tentativa de agora: ele falava aos alunos, pessoas de 17 anos, que a vida deles estava cheia de engrenagens abertas à sua frente, que muitas combinações eram possíveis e, conforme essas combinações, a vida poderia girar de diversas maneiras. Depois que as escolhas vão sendo feitas, o tempo vai passando, essas engrenagens vão ficando sólidas e é cada vez mais difícil desfazer as combinações. As engrenagens se apegam uma à outra e qualquer desencaixe para novo reencaixe só se dá depois de muita instabilidade e luta. Às vezes sofrimento. É uma força que muita gente não tem. Por isso, dizia, a importância de pensar bem nas escolhas que estavam à frente dos alunos, tantas eram as engrenagens novinhas, azeitadas e sedutoras.
Voltando ao presente: nesse período de recesso escolar e Copa do Mundo, aproveitei para fazer uma viagem à Holanda, mais especificamente à cidade de Utrecht, de onde escrevo este post. Vim para tentar colocar em pé algumas ideias para um próximo romance. E foi aqui, em contato com outro tipo de cidade – uma cidade que fez escolhas diferentes por diversos motivos –, que eu pensei nessa história da engrenagem, querendo ver se ela funciona também para contextos sociais e não somente para os indivíduos.
O que trago são impressões, claro, pois estou aqui apenas como turista babão. Sei do débito que os chamados países desenvolvidos têm com os mais pobres, suas colonizações espúrias, suas dívidas com os créditos de carbono e por aí vai. Mas não tem como não ficar boquiaberto, deslumbrado mesmo – o complexo de vira-latas mordendo a barra da calça – quando o tema é a construção de uma cidade para as pessoas, planejamento urbano e tal. A discussão da mobilidade urbana multimodal, ou seja, baseada na diversidade de meios de locomoção é algo comovente (e pense bem na palavra co-movente).
Os parques, tão bonitos em Curitiba, mas enrodilhados em si mesmos, periféricos, cercados e reservados ao lazer, são aqui elementos constituintes da malha urbana. As artérias da cidade não são veias entupidas, com ruas apinhadas por frotas inacreditáveis de automóveis, ladeadas por calçadas estreitas e esburacadas. Calçadas largas ao lado de ciclovias, e ciclovias ao lado de ruas para carros. E ônibus, que são muitos. A harmonia com que pedestres, ciclistas e motoristas transitam (nas cidades brasileiras, o trânsito atingiu o paroxismo ao se tornar intransitivo) é, de novo, comovente. Os parques são lineares e ligam de fato um lugar a outro. Ah, e as livrarias de rua… o cinema de rua… não escondidos nos shoppings centers. Bicicletas com pessoas de todas as idades e com todo o tipo de roupa são, sem nenhuma dúvida, o meio de transporte mais usado.
Além de distribuir renda, é preciso também distribuir a cidade para todos que nela vivem. Uma urbanização ruim afeta todas as classes sociais.
Quando a gente vê a situação das cidades brasileiras, os carros gigantes atravancando o caminho e detonando o asfalto, os catadores de material reciclável tratados com invisibilidade naqueles carrinhos estropiados, as mansões dando as costas para o lado de fora da cidade, voltando-se para dentro dos condomínios fechados e deixando as ruas na sombra, o perigo sempre à espreita, os acidentes de trânsito que matam ciclistas, pedestres e motoristas, calçadas que fazem a gente ter que se acostumar a olhar para baixo e esquecer as linhas de outros horizontes possíveis, enfim, quando a gente vê tudo isso, acho que a história das engrenagens pode fazer sentido. O nosso jeito de pensar a cidade, se é que, como cidadãos, nós a pensamos, foi sendo feito de escolhas (mesmo a passividade e a não-escolha são escolhas) e as engrenagens foram se fechando, se fechando, organizando sua lógica e até enferrujando a ponto de ser quase impossível vislumbrar novas combinações.
Esse é um blog de educação e mídia. Então, como gancho lógico, lá vem a necessidade de – oh, chavão dos chavões! – pensar o papel da escola. Em tempos de informação a torto e a direito, a escola trabalha com o olho na tradição do conhecimento historicamente acumulado, mas para que ele ilumine novas práticas e não apenas enxergue parafusos e engrenagens que gritam “a estrutura é essa, aprendam-na, adaptem-se e vocês se darão bem em relação aos outros”. A melhor escola é a que melhor adapta? Para mim, essa é a escola mais covarde e predadora. Se a engrenagem está rangendo e não funciona direito, temos muitos elementos inspiradores para a mudança: o passado das civilizações e como elas construíram seu presente, as informações do presente, as mídias sociais, mapas, imagens, vídeos, informações do mundo todo, e, a partir disso, a imaginação e a criatividade que nos tornam humanos e podem projetar nosso olhar para um futuro diferente.
Esses dias li, e assinei embaixo, um texto criticando essa mania arrogante de quem viaja e volta falando mal do Brasil, “ah, porque se fosse no Brasil”, “ah, porque em Nova York”, “ah, imagina na Copa”. Uma chatice mesmo. Mas qualquer extremo nesse caso me parece míope. Ficar em cima do muro permite ver os dois lados, não é necessariamente uma incapacidade de tomar partido.
*Artigo escrito por Cezar Tridapalli, coordenador de Midiaeducação do Colégio Medianeira, instituição de ensino associada ao Sindicato das Escolas Particulares do Paraná (Sinepe/PR). Tridapalii também é escritor, autor dos romances Pequena biografia de desejos (7Letras) e O beijo de Schiller (Arte&Letra). O SINEPE é colaborador voluntário do Instituto GRPCOM no blog Educação e Mídia.
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