Movimento impulsionado por um entusiasmado discurso de neutralidade política, o Escola Sem Partido nos seduz logo de início, pois traz no título da proposta uma excelente provocação. Quem poderá ser contra essa denúncia que o nome do movimento anuncia? Ninguém há de querer partidos políticos agindo na escola.
Escola Sem Partido surgiu em 2004 como reação à suposta influência ideológica de esquerda que estaria por tomar conta da educação brasileira. Impulsionado pela crescente polarização que tomou conta do debate político nos últimos anos, o movimento alcançou repercussão nacional quando em 2014, a pedido do deputado estadual fluminense Flávio Bolsonaro (PSC), a proposta foi apresentada como anteprojeto de lei. Atualmente, tramitam variações do anteprojeto na câmara federal e em diversas outras casas legislativas, estaduais e municipais.
Encampado principalmente pelas bancadas religiosas nas câmaras e por parlamentares da chamada extrema direita, o projeto é alvo de muitas críticas de especialistas e profissionais do setor educacional, pois afeta diretamente a liberdade de expressão dos professores em sala de aula, constrange a reflexão histórica e sociológica e praticamente impede que sejam feitos estudos sobre sexualidade na escola, tema caro à Educação contemporânea, essencial no combate à violência de gênero. Por estas razões, não há consenso sobre sua legitimidade jurídica. O ministério público já emitiu nota técnica em que aponta sua inconstitucionalidade. Um dos pontos mais polêmicos é a colocação de um cartaz em todas as salas de aula do Brasil que visa orientar o comportamento dos professores. Outro é a implantação de um disk denúncia, por meio do qual alunos e pais poderão acionar o ministério público e denunciar professores que manifestem uma determina preferência política ou que discutam valores morais distintos daqueles que o estudante encontra em casa.
Antes de mais nada, é preciso dizer que, como expressão de inquietações de parte da sociedade civil, este movimento deve ser respeitado. Minimante, ele provoca um debate que precisa ser constantemente resgatado, que versa sobre os excessos que porventura possam ocorrer no que se refere à “catequização política” dentro dos ambientes de ensino. Ocorre, no entanto, que os chamados Sem Partido observam e destacam apenas a “catequização de esquerda”, como se apenas essa vertente pudesse ser revelada, como se a escola não fosse, tradicionalmente, um espaço onde coexistem práticas conservadoras e progressistas, onde também se descobre, com frequência, a “catequização de direita”.
A ação pedagógica tende a refletir os pressupostos culturais que prevalecem em determinada sociedade. A escola, de modo geral, não subverte os princípios prevalecentes na sociedade, mas reproduz o seu movimento. Se a sociedade passa por transformações, a escola assimila, mas lentamente. Há um descompasso entre estes dois ritmos de mudança e as instituições de ensino expressam, via de regra, um certo atraso em relação às dinâmicas da sociedade. Em um país como o Brasil, com uma população predominantemente conservadora, teremos também uma Educação em que a visão conservadora domina. Por outro lado, é preciso reconhecer que uma das funções da ação pedagógica é produzir ampliação de referenciais científicos, éticos e estéticos. E isso reconduz a escola ao centro de alguns processos de transformação social e mudança cultural, o que provoca incomodo nos setores mais conservadores da sociedade, que sempre compreenderam a Educação como um mecanismo de reprodução dos pressupostos culturais prevalecentes.
Nada impedirá que o debate proposto pelo movimento Escola Sem Partido seja levado adiante. As indagações lançadas são pertinentes e provocam debates interessantes. Como convite à reflexão, a proposta é válida e pode agregar conhecimentos. Como lei, é um retrocesso aos tempos de perseguição ideológica e um duro ataque à liberdade de expressão. É no campo do debate de ideias e não da atividade policialesca que suas ideias ecoarão. Se esse movimento obtém grande repercussão e apoio, isso se deve ao fato de que suas pautas correspondem às inquietações de um número significativo de pessoas. O debate educacional em nosso país, sempre muito producente e inclusivo, terá de acolher agora esta nova dimensão reflexiva provocada pelo Escola Sem Partido. Esse é o grande poder da Educação, incluir ao invés de rechaçar. Um esforço quilométrico terá de ser feito, de ambos os lados, para que este diálogo se aprofunde e sua razão política não se perca na intolerância acerca das diferenças que o sustentam.
Um dos problemas que mais impedem a construção de um diálogo eficiente é que boa parte dos representantes dos discursos de “A” ou de “B”, sejam eles conservadores ou progressistas, não se reconhecem como portadores de ideologia. Quem produz doutrinação ideológica é sempre o outro. Uns se intitulam donos de uma visão mais crítica e histórica da realidade. Outros argumentam que é assim que as coisas são, pois assim foram criadas para ser. Mas ambos tendem a naturalizar a sua própria opinião, como se ela fosse necessariamente a mais coerente ou a mais justa. Uns cultuam a Certeza, porque seus conceitos são científicos. Outros acreditam piamente na Verdade, porque suas ideias estão de acordo com a Bíblia. E, assim, o diálogo se esvai, restando apenas adjetivações, julgamentos, condenações de uns para com os outros.
Toda comunicação e todo ato educativo carrega um pano de fundo ideológico que revela o tipo de interação social de determinado grupo. Esta interação inevitavelmente impacta a consciência dos indivíduos. Não há como escapar de algum tipo de configuração de cunho ideológico, pois a substância das ideias, a sua própria razão de ser, está na sua significação e no seu sentido. E este sentido, que pode ser transformado, é anterior ao indivíduo que o internaliza, pertence a uma conjuntura coletiva anterior, na qual o indivíduo imerge sem necessariamente notar o quão profundo foi o mergulho. Vivemos, pois, imersos em ideologia. Como diz Bakhtin, “se privarmos a consciência de seu conteúdo semiótico e ideológico, não sobra nada”. Ao contrário do que versa o movimento Escola Sem Partido, não são apenas as pessoas alinhadas mais “à esquerda” que possuem ideologia. Aliás, uma leitura atenta do seu programa, ou uma breve busca sobre a performance política dos seus proponentes é capaz de revelar, de imediato, que o próprio Escola Sem Partido é também expressão de pressões partidárias e de tendências ideológicas tão intensas e ativas quanto aquelas que propõe combater.
Não há lugar no mundo para uma Educação sem intencionalidades. O ato de educar pressupõe um ideal de sociedade, uma concepção de ser humano, um propósito qualquer que aponte para algo sempre em andamento, sempre por vias de melhorar. A Educação é um espaço de disputas, de tensões. Contribuições progressistas e conservadoras sempre fizeram parte da construção do conhecimento escolar. Não existe Educação fácil, sem conflitos, que não tome partido diante das circunstâncias sociais que a constrangem. Uma Educação que opta por não interferir no mundo a sua volta, e que não compreende a si mesma como resultado das forças ideológicas que a pressionam, é aquela que nega a presença do fogo à sua volta, sem se dar conta do quanto cheira à fumaça.
* Artigo escrito por Nélio Spréa. Doutorando e Mestre em Educação pela UFPR – Universidade Federal do Paraná, Graduado em Música pela FAP – Faculdade de Artes do Paraná, Palestrante e Diretor da Parabolé Educação e Cultura, que desenvolve projetos culturais de interesse social e educacional. O profissional colabora voluntariamente com o Instituto GRPCOM no Blog Educação & Mídia.
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