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Pelo bem de nossas articulações (ósseas e sociais)!

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Muitas crianças estão viciadas em celulares e tablets. A farta e encantadora oferta de jogos e vídeos online cai como uma luva na rotina de algumas famílias. É que, além de gerar entretenimento, esses atrativos mantém os filhos quietos por longos períodos, sem bagunçar a casa, ou protegidos dos perigos de se machucar brincando. Junta-se aí a fome com a vontade de comer. A internet, os vídeos e os games são uma espécie de “sossega leão”. Assim, os produtos da indústria do entretenimento virtual infantil não servem apenas às crianças. Servem também aos pais que, de acordo com suas conveniências, deixam as novidades tecnológicas ocuparem um espaço fundamental na formação de seus filhos.

O preço dessa solução é em geral desmedido. Os prejuízos são herdados pelas crianças. Problemas posturais como cifose, escoliose e outras perturbações de ordem física são uma das faces negativas dessa relação. Pouca gente está atenta a isso, afinal é muito difícil identificar o avanço dessas doenças a curto prazo. Pesquisas no campo da ortopedia nos alertam que estamos diante de uma pandemia mundial de doenças cervicais na infância causadas pelo excesso de uso de smartphones. Essa dura realidade faz parte do pacote oculto oferecido por esse novo modelo de entretenimento, que é capaz de concentrar em uma única tela uma gama infinita de possibilidades de diversão. Um mundo encantador, de desafios, lutas, disputas e conquistas, está ao alcance dos dedos das crianças. Não é preciso mais levantar do sofá, dar voltas na casa, subir no muro, construir castelos e quartéis generais para conquistar ou salvar o mundo.

Mas há algo ainda mais complicado aí. Ficar no computador, tablet ou celular por horas a fio pode significar uma redução drástica das possibilidades de interação social. Ainda que existam propostas de jogos em rede, ou plataformas que permitem interação virtual, como os sites em que as crianças criam seus perfis, formam clãs e se comunicam frequentemente, ainda assim o convívio social e a experiência cultural estarão sempre restritos às condições e limites de cada dispositivo ou aplicativo. Não haveria mal nenhum nisso não fosse a quantidade de horas que essas atividades ocupam. Os jogos eletrônicos e vídeos são produtos culturais fabulosos e é inegável que há neles contribuições importantes para o desenvolvimento das crianças. Mas há que se ter equilíbrio. Há que se mover. É preciso cair e se levantar. É fundamental machucar-se e aprender a lidar com a dor.

A pergunta que podemos fazer em nossa relação com filhos, ou com alunos, é a seguinte: que oportunidades a criança está tendo de criar sua própria atividade, de frustrar-se com seus erros e tentar novamente, de empreender fantasias brincando, de explorar materiais diversos e de estabelecer novos vínculos sociais e amizades?

O brincar à moda antiga é um contraponto interessante que pode ajudar a equilibrar essa equação. Brincadeiras tradicionais carregam referências culturais importantes e também são fonte de conhecimento para as crianças. Refiro-me às variações de pega-pega, esconde-esconde, jogo com bola, corda e elástico, quebra-cabeça, jogo de mãos, bater cartinhas, subir em árvore, brincar de casinha e carrinho, envolver-se na representação de papéis etc. Esse brincar à moda antiga pode ser orientado por adultos em alguns momentos, mas é fundamental que a criança encontre tempo e espaço para descobrir o que fazer durante a brincadeira. É preciso sentir tédio para que algo novo venha à mente e a criatividade aflore. Fornecer entretenimento o tempo todo à criança é decretar morte à criatividade. Além disso, ao empreender por conta própria a sua atividade, a criança acessa referenciais importantes da vida em sociedade.

Por exemplo, ao brincar de ser mãe ou pai com seus colegas, cuidando de bonecos e bonecas, arrumando a casa, a criança apreende e exercita regras dos comportamentos maternal e paternal. É que essas regras sociais, com as quais ela própria interage em seu cotidiano, migram para a brincadeira e são de algum modo redistribuídas pela criança de acordo com suas necessidades. Questões da ordem do dia, da memória afetiva, aparecem na “cena” que a criança inventa, são selecionadas e misturadas de acordo com os seus interesses, compondo uma nova realidade. Na hora de montar a brincadeira, a criança precisa pensar nas escolhas que fará. Pensando em ser pai ou mãe, ela se depara com os significados e atribuições destes papéis e opera interpretações sobre eles. A “cena” criada pela criança é fruto de sua imaginação. Mas o que ela vive na brincadeira é real, pois seus sentimentos e suas ideias estão sujeitos à coerção e ao constrangimento alheio que surge da experiência com os outros.

Pais e educadores podem estimular a prática de brincadeiras tradicionais, brincando junto com as crianças e definindo limites de tempo para a criança estar diante de uma tela. Há que se ter alguns dias sem tela. Em minha casa instituímos, como costume, uma semana sem tela por mês. Funciona muito bem. É uma semana inteira na qual, nem as crianças, nem o casal, liga telas. Isso tem gerado descobertas incríveis. Quando a semana sem tela sem aproxima, já vem aquela expectativa de que faremos coisas diferentes. A gente volta a conversar com mais intensidade. Cantamos. Saímos para pequenos passeios pelo bairro no início da noite. Jantamos ouvindo música. Jogamos xadrez e lemos. Uma semana sem tela por mês em casa é suficiente para nos lembrar o quão maravilhoso é estar sem a internet ao nosso dispor o tempo todo.

Tenho acompanhado, nos cursos que realizo pela Parabolé Educação e Cultura, que há um desejo crescente, entre pais e educadores, de conter o avanço desta dependência lúdica que está se formando diante das telas. Muitas escolas e Secretarias Municipais de Educação nos procuram solicitando assessoramento nessa área, pois identificam que o vício nas telas está comprometendo os processos de aprendizagem convencionais e afetando as dinâmicas de convívio de crianças entre si.  Há pais que nos escrevem para falar sobre isso. Eles reconhecem a dificuldade de estabelecer limites para o uso dos tablets e celulares. Alguns de nossos livros e DVD’s são por eles utilizados como fonte de pesquisas de brincadeiras tradicionais, porque o brincar à moda antiga está atrelado à sua memória afetiva e ganha um significado especial se revivido pela nova geração.

Não se trata, portanto, de demonizar as novidades tecnológicas. Pelo contrário, o que está em jogo é compreendê-las em todas as suas dimensões para que, dentro de limites razoáveis, possam ser cada vez melhor aproveitadas. Acredito que as novas formas de entretenimento podem conviver com as velhas. O fato de termos brincado de esconde-esconde ou de pega-pega durante milênios sem cessar, faz crer que algo de substancial há nestas antigas práticas. Pular, cair, levantar, balançar, montar, quebrar, correr, fugir e pegar foram, ainda são e sempre serão práticas com as quais teremos que conviver para o bem de nossas articulações ósseas e sociais!

 *Artigo escrito por Nélio Spréa. Doutorando e Mestre em Educação pela UFPR – Universidade Federal do Paraná. Graduado em música pela FAP – Faculdade de Artes do Paraná. Palestrante, escritor e diretor da Parabolé Educação e Cultura.

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