Proponho aqui uma breve reflexão sobre como podemos ajudar nossos alunos a equilibrar melhor a instigante e intrigante relação que estabelecem com os produtos da indústria do entretenimento. Essa relação é robusta, pois os produtos massificados adentram com certa facilidade os meios educacionais, estampam capas de cadernos, adornam lápis e borrachas, soam nos aparelhos de som da escola, ou viram figurinos na apresentação de final de ano.
Gosto de definir a “Escola” como um conjunto de vias de acesso. Múltiplas vias somadas, interconectadas, caracterizam essa fundamental instituição moderna. Algumas de suas vias dão acesso imediato ao conhecimento selecionado e organizado na forma de currículo, por meio das disciplinas escolares. Outras vias geram acesso a formas diferenciadas de produção e gestão do conhecimento, porque toda escola se estrutura não apenas conforme as diretrizes governamentais, mas também pelo modo como sua comunidade se organiza. A Escola é via de acesso também a distintas metodologias de ensino e de organização do trabalho, porque quem ensina algo, não ensina apenas o conteúdo, mas também a forma como o conteúdo está sendo ensinado.
Como via de acesso à convivência social com distintos grupos, identidades, ideologias, culturas, a Escola é capaz de produzir questionamentos sobre o modo como a sociedade se organiza. Se bem dirigida e organizada, viabiliza acesso a diversificadas expressões estéticas, permite que se produza arte e conhecimento em seu interior e contribui significativamente com o desenvolvimento cultural de sua comunidade. Alunos, familiares e profissionais que trabalham na Escola encontram nesta somatória de vias de acesso a oportunidade de viver experiências culturais múltiplas, menos massificadas, com características locais ímpares e potencialmente mais profundas do que aquelas que se dão, por exemplo, diante de uma tela de computador, celular ou de televisão.
Mas antes de por aqui seguir, permitam-me fazer uma ressalva importante: não tenho intenção de desgraçar as produções massificadas da indústria do entretenimento. Aliás, eu assisto TV, gosto de alguns jogos eletrônicos, coleciono alguns brinquedos industrializados e reconheço nestes produtos muitos elementos que podem nos favorecer enquanto pais e educadores. Um deles, talvez o principal, é o êxito que estes produtos alcançam ao estabelecer diálogos prolongados com o público. No caso das crianças, por exemplo, um herói de desenho animado pode passar anos inspirando brincadeiras e reforçando parâmetros comportamentais e estéticos. Seu repertório de gestos, de expressões faciais, seu vestuário, seus clichês narrativos, seus poderes e sua personalidade são fontes de “beleza” ou “feiura”, do que pode e do que não pode, são referências potentes que influenciam escolhas em distintas áreas da convivência, sobretudo nos momentos em que as crianças brincam.
Esta precisão comunicativa esculpida pela indústria do entretenimento, e que tanto sucesso faz, pode ser fonte de inspiração para nossas práticas educativas. Como seria se pudéssemos criar, adaptar ou reproduzir narrativas capazes de gerar tanto interesse prolongado e, ao mesmo tempo, agregar sentido ao ensino curricular? Nossas aulas seriam mais vibrantes? Nossos causos com finalidade didática se reproduziriam nos recreios, inspirariam pega-pegas entre heróis e vilões? Seriam mais continuados e significativos os nossos diálogos com os alunos se, vez ou outra, acolhêssemos as especificidades de seu mundo simbólico como parte de um processo coletivo de produção do conhecimento?
Queiramos ou não, gostemos ou não, os produtos massificados rompem os muros da escola, instigam brincadeiras, inspiram as produções e “empoderam” temporariamente as crianças, que se transformam em heróis e saem pelo pátio escolar salvando o mundo, num exercício criativo de exploração dos valores sociais e das noções de convivência. Como diz o sociólogo português Manuel Sarmento, não podemos fazer entrar pela porta da escola apenas o aluno; a criança tem de vir junto.
A criança é este sujeito criativo que está no mundo, que traz para dentro da escola as forças e influências do mundo. Negar a criança em nome do aluno é perder de vista as potencialidades humanas que só desabrocham quando estamos conectados de algum modo aos nossos centros de interesse. Se a escola nega aquilo que é de conhecimento das crianças e que pertence ao seu domínio, automaticamente fecha uma de suas mais significativas vias de acesso, que é a de interlocução com as culturas de massa. E só é possível gerar alternativas às culturas de massa neste nosso mundo interconectado se reconhecemos e compreendemos as forças e influências que delas advém e que tanto geram interesse nas crianças.
Assim, uma vez acolhida, essa robusta relação das crianças com os produtos da indústria do entretenimento pode então ser questionada. Jogos eletrônicos e desenhos animados já são responsáveis por preencher a maior parte do tempo lúdico das crianças dentro de casa. São atraentes, repletos de desafios, mas restringem o movimento do corpo e limitam a circulação das crianças no espaço. Tendem a posicioná-las mais como espectadoras do que produtoras da ação. Em muitos jogos não é preciso levar em conta a opinião do outro, nem o estado de coisas à nossa volta, o que gera uma sensação totalitária de poder sem censura. Induzem ao consumo do supérfluo, por meio do fenômeno do licenciamento de produtos, condicionando a imagem e a função dos alimentos, da higiene e do vestuário à identificação afetiva da criança com os personagens.
Atentos a esta problemática, pais e educadores podem questionar com profundidade os excessos desta relação que por vezes é viciante entre as crianças e os produtos massificados. Preocupados com a formação intelectual, emocional e corporal das crianças, pais e educadores podem buscar constantemente novas referências criativas e desenvolver uma capacidade de criar e promover situações lúdicas e artísticas capazes de competir em pé de igualdade com os produtos do entretenimento industrializado. Mas como?
Eis alguns exemplos: promover a circulação do grupos infantis, estimulando o contato entre crianças de distintos pertencimentos sociais; ocupar com as crianças os espaços públicos, combatendo a cultura do medo que impele as famílias a se esconderem dentro de casa, como se a rua fosse o lócus da criminalidade; ir a museus, parques, festivais e feiras; fechar ruas nos finais de semanas, impedindo a passagem de carros, para que as crianças possam brincar e circular em locais mais amplos e ao ar livre; promover o contato dos grupos infantis com personalidades locais, moradores antigos, figuras emblemáticas da região; desenvolver projetos de estímulo à prática de brincadeiras tradicionais.
Trata-se, pois, de posicionar a escola como um espaço em que os produtos largamente difundidos pela publicidade possam concorrer com atrativos locais, criados por agentes da região, artistas, contadores de histórias, artesões, atores, arte-educadores, pequenos comerciantes etc. A Escola detém condições simbólicas e institucionais para se posicionar nesta direção e criar espaços para que os produtos culturais locais possam ganhar impulso, seja porque ela consegue abrir espaço para que eles entrem, seja porque ela cria mecanismos para fomentar a sua produção, uma vez que dentro da própria escola há artistas capazes de criar para as crianças e criar com as crianças. Cabe aos gestores, professores e demais profissionais da instituição a identificação, o reconhecimento e a valorização desse campo de possibilidades ao qual a escola pode estar vinculada.
Quem estiver disposto a fazer este investimento político-pedagógico na Escola, buscando novidades em seu entorno e favorecendo a presença de outras formas de arte e entretenimento em seu interior, terá contribuído com um equilíbrio maior entre expressões autênticas e expressões massificadas. Com isso, ajudará os alunos, familiares e profissionais que nela atuam a desenvolver um olhar crítico para as diferenças entre o original e a cópia, entre o autoral e o estereotipado, entre o artístico e o industrializado. E promoverá a convivência de uma diversidade maior de formatos capazes de pluralizar a experiência cultural dos membros da comunidade escolar.
* Artigo escrito por Nélio Spréa, doutorando e Mestre em Educação pela UFPR – Universidade Federal do Paraná, graduado em Música pela FAP – Faculdade de Artes do Paraná, palestrante e diretor da Parabolé Educação e Cultura, que desenvolve projetos culturais de interesse social e educacional. O profissional colabora voluntariamente com o Instituto GRPCOM no Blog Educação & Mídia.
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