Uma questão ganha caldo no mundo na educação – a chamada “resolução de problemas”, método que caminha a passos largos para se tornar uma moda das escolas de ensino médio e universidades. Não é a última em Paris, mas em Harvard, nos EUA. O risco é o de sempre em se tratando de onda – a de virar um truque bom de marketing, até ser sepultado por alguma outra novidade, debaixo de fogos de artifício. Já se viu isso antes. Mas de uma coisa não se pode acusar o tal do processo: a de falta de sedução. É atraente. E tem futuro.
Caso alguém tenha pegado o bonde andando, o tal método se propõe a oferecer aos alunos uma situação profissional, que tem de estudar, defender com unhas e dentes, apresentar propostas e soluções – uma lenha, enfim. Grosso modo, não parece muito diferente do popularíssimo “júri simulado”, que em tempos idos trazia para a sala de aula – com turma de acusação e de defesa, uma de cada lado, engalfinhando-se – os prós e os contras de qualquer assunto, do aborto ao apartheid, passando pela horta sem agrotóxicos.
O júri simulado, sabe-se, cansou a beleza de meio mundo porque resvalava na obviedade. O exercício tende ao maniqueísmo no último grau da escala Richter, com larga vantagem para os cowboys. Pode-se acusar o método, sem cerimônia, de ter ajudado a formar uma geração de politicamente corretos, sem humor e mergulhados na preguiça. Pior – uma geração acostumada a agir por consensos e prejulgamentos.
A resolução de problemas tem outra “pegada”, como se diz. Interessa-lhe menos a correção moral, a arbitragem, e mais a simulação de situações reais do mundo do trabalho. Reforço a tese – é o charme da novidade. E sua perdição.
Há muito não aparecia no mercado da educação algo tão engenhoso – e já existe quem prefira chamar o método de peer instruction, com algum grau de pedantismo, temos de nos acostumar com o bilinguismo. Por um motivo muito simples: a disposição para solucionar questões, em parceria com os alunos, responde há umas tantas demandas do ensino contemporâneo. O educando pesquisa a fundo, pois não tem como copiar verbete de enciclopédia – tem de responder a uma pergunta e para ela não existe resposta de bandeja. Nessa labuta, conteúdos inesperados vão sendo incorporados, a depender da disposição e inteligência de cada grupo. Aluno vira agente, sai da pasmaceira, perfeito.
O método tem lá seus caprichos, é verdade. Não funciona em sala apinhada de alunos, o que pega de jeito escolas particulares que ocupam cada pedacinho de chão, desafiando, inclusive, as regras da Organização Mundial da Saúde, a OMS. Outro porém: não se trata de um seminário tradicional, no qual os grupos têm míseros minutos para apresentar o que investigaram, mas de análises trabalhosas, que são colocadas na roda, com tempo, garantindo a quem ouve acompanhar a construção daquele conhecimento. A aula se transfere para o exercício e não é o exercício que preenche a aula, o que exige do professor andar descalço sobre as cinzas.
Roda, aliás, é outra palavra-chave nesse método. Quem aplica a “resolução de problema”, ou peer instruction tem de abrir mão das filas, nas quais a única diversão é enxergar a nuca do colega da frente, por anos a fio. Esse dinamismo tende a levar todos à fala, e a fala é o grande trunfo da educação. O aluno que se coloca, expõe, prova seu conhecimento, projeta, uma maravilha, tal qual nos garantiu, com conhecimento de causa, o mestre Bachelard.
Para coroar, não tem como a escola que usa a “resolução” tratar o mundo da porta para fora como a pátria dos demônios, na qual se faz tudo errado; e a da porta para dentro – a sala de aula – como o palácio de cristal, medida de todas as coisas. A “resolução” nos tira dessa zona de conforto e obriga a pensar a ação de quem faz todo dia, aplicando inteligência à vida real. Quem trabalha atrás do balcão pensa, e tem algo a nos dizer. Considerar isso, nas faculdades em especial, é praticamente a conversão de São Paulo.
O senão é a maneira como a escola tecnicista vai se apropriar dessa onda. Como diz o mestre Ciro Marcondes Filho, uma das marcas do fin-de-siècle – esse buraco negro em que nos metemos desde que declararam o fim das ilusões – é o declínio das grandes narrativas, da hermenêutica, das ideologias, da história, o que na prática implica em tratar tudo como “treinamento” para o presente, pois só o presente existe, com pouca luz e pouca graça. Isso inclui a educação. Sem perspectiva futura e passada, ensina-se a fazer e a fazer, propósito para o qual a “resolução” de problemas parece servir como uma luva. Esse é perigo – uma dinâmica certa, mas na hora errada.
Se o método foi recebido como uma panaceia, fazendo do ato de ensinar sinônimo de pragmatismo, não vai demorar muito a que os professores se sintam culpados feito Judas depois de uma aula expositiva. Temo que se fiquemos cada vez menos à vontade no papel de narradores, o que somos acima de tudo. Que nos apliquemos o silício e a palmatória por ter “batido” um texto essencial com os alunos, limitando-nos a pedir que não percam nenhuma edição dos programas de rádio, tevê e jornal sobre mundo corporativo.
Feito o alerta, não custa experimentar as delícias do peer instruction e congêneres. Basta fazer o check-list: encontrar um tema bom para formular o problema, trabalhar com uma turma pequena e ter bastante tempo para desenvolver, entendendo que nunca se sabe de fato aonde se vai chegar. E, em tempo – não carece jogar pela janela tudo o que veio antes, achando-se o Colombo da pedagogia. Só para lembrar.
>> José Carlos Fernandes é jornalista da Gazeta do Povo e professor do curso de Jornalismo da UFPR.
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