Meu princípio foi o Livro. Lembro, entre os meus queridos, de quando a palavra era desejada e o silêncio que se fazia para ouvi-la produzia um clima austero e , ao mesmo tempo, excitante. Lembro quando os ditados eram repartidos e conduzidos por outras torrentes de palavras aos quatro ventos e aos sete mares. Lembro de como os conselhos eram guardados com o carinho dos presentes caros e as lições eram escritas no couro dos cordeiros ou nas tramas dos papiros e preservadas para as futuras gerações. A palavra era o leite e era o pão. Dela se nutria e se saciava.
Guardo com saudade os primeiros livros e a ansiedade de percorre-los com meus olhos ávidos de guri que queria enxergar mundos para além de sua esquina mal cuidada pelos adultos. Lembro hoje com tristeza o esquecimento das palavras que sorvi, mas sinto que ainda tenho o travo e o doce de algumas delas perdidas entre os dentes, tão fortes as mordidas que dei. As palavras entranharam-se e não sou só carne e veias e ossos e resíduos que a velhice acumula. As palavras estão em mim.
Hoje falo para muitos jovens e há algum entendimento. Mas não há mais a música que se ouvia quando a palavra fazia a sua mágica . Ou se há , quando há, é assim, tênue, brisa fraca, chuvinha de nem molhar . As palavras declinam nos ouvidos dos mais moços.
Passeio pelas livrarias e pelos sebos da cidade como um daqueles nobres antigos com seus cães perdigueiros, buscando e antecipando o prazer da caça. Como é emocionante aquele exemplar que se julgava perdido e agora encontra-lo ali ao alcance dos olhos cheios de sede; aquele autor que causou tanta impressão e agora se ofertando em outra obra; aquela edição tão caprichada daquele livro já lido outras vezes. Caça e caçador em comunhão. Ato de amor , não de consumo.
Hoje as livrarias têm cafés e oferecem coisas de beber e de comer. Quase não consigo sentar nesses lugares, tão saciado com os corredores de nomes e capas e textos e imagens. E principalmente, palavras. Como as notas musicais, a mágica de construir mundos com um punhado de letras. Composições infinitas que me e(n)levam, olhos afinados, seguro de novas surpresas.
Quando me veem nessas andanças, meu corpo esculpido de muito sentar e ficar na rede e então dizem que devo me exercitar, rio por dentro: sou atleta de longas distâncias, pulo muros , enfrento oceanos, mergulho em delírios, percorro vidas, levanto enigmas, derrubo vilões, atinjo cumes.
Sou um leitor.