Lembrar dele traz prejuízo, dizem os comerciantes.| Foto:

O Brasil dos séculos XVI e XVII implementou a escravidão em larga escala, trazendo milhões de africanos para mover a máquina agroexportadora da Colônia e, nos séculos XVIII e XIX, do Império.

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A lógica da escravidão pressupunha disponibilizar mão de obra diuturnamente, submetendo essas pessoas a um trabalho exaustivo e sem qualquer remuneração ou expectativa de melhora. Para conseguir esse resultado e frear as reações que colocassem em risco o sucesso do empreendimento produtivo e comercial, era preciso que essas pessoas fossem de todo ( ou quase todo) “alienadas de sua origem, liberdade e produção. Tudo deveria escapar à consciência e ao arbítrio desse produtor direto”.

Essa citação é do excelente livro “Brasil: uma biografia”, da antropóloga Lilia Moritz Schwarcz e da historiadora Heloísa Starling, publicado pela Companhia das Letras, de São Paulo.

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Segundo as autoras, uma dupla visão embasava a postura dos senhores de escravos: de um lado, imaginavam-se esses senhores europeus que sua missão nos trópicos era um fardo necessário para recuperar as almas perdidas dos índios e negros pelo trabalho. E que essa recuperação só era possível pelo trabalho, pela disciplina, pela obediência. Logo, o “sofrimento” do senhor era o preço que ele pagava para obter um resultado “civilizatório”, incluindo aqueles seres “menores” no mundo do trabalho e da cristandade.

Para efetivar essa “dura tarefa”, havia modelos e cartilhas de como agir para que os escravos, desde cedo, “aprendessem” como se comportar.

Afirmam as autoras: um exemplo regular era o famoso quebra-negro, castigo muito utilizado no Brasil para educar escravos novos ou recém adquiridos e que, por meio da chibatada pública e outras sevícias, ensinava os cativos a sempre olhar para o chão na presença de qualquer autoridade.

As autoras citam , como fonte, o comentário do padre Jorge Benci, que presenciou essas práticas no final do século XVII. O clérigo assim justificava a “necessária pedagogia” do quebra-negro: para que os escravos não se façam insolentes, e para que não busquem modos com que se livrem da sujeição de seu senhor, fazendo-se rebeldes e indômitos.

Assim, a pedagogia do trabalho sem ganho pessoal e a criminalização da rebeldia entranhou-se, ao longo dos séculos, no espírito de parte expressiva da classe proprietária brasileira e, igualmente, do imaginário popular, travestindo o trabalhador que reclama de “vagabundo que não quer pegar no pesado, só quer saber de folia”, do negro “que é preguiçoso e é por isso que não progride”, da doméstica “que é folgada e que não sabe o seu lugar”( esse último exemplo tão bem retratado no filme “que horas ela volta” de Anna Muylaert).

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Esse discurso naturalizado ao longo dos séculos está na raiz das agressões à artista Taís Araújo e às críticas ao programa “Mister Brau”, da TV Globo, por apresentar dois negros como protagonistas bem sucedidos e patrões de um mordomo branco e culto.

Esse discurso naturalizado ao longo dos séculos está na raiz da incompreensão de como é possível os negros reivindicarem, exigirem seus papéis como cidadãos de pleno direito, por meio das medidas afirmativas, como as cotas.

Pois como é possível aos negros a “ousadia” de levantar os olhos, de bulir com a cartilha da obediência que permitiu a acumulação extraordinária de capital que forjou a elite brasileira, dona de cabrestos e cabaços, de reses e gente?

Esse incompreensão – que coopta parte de uma classe média que aspira posições e gestos da elite – está na raiz do neoconservadorismo que se espalha pelo país. Ancorado nos erros do governo, aproveitam para dinamitar seus acertos, numa política de volta à Casagrande, cortando “gastos excessivos” com os pobres, como se verifica na proposta do orçamento para 2016 ou na política de fechamento de escolas em São Paulo.

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Somos o que sempre fomos: nosso presente ancora-se em nossa formação histórica, esse passado de exploração e sofrimento e, ao mesmo tempo, de esquecimento seletivo. O “quebra-negro” está ainda arraigado no imaginário e na mal contida vontade dos que clamam por “ordem” e por “obediência”. Não se trata da ordem e da obediência necessárias ao crescimento coletivo em um ambiente democrático e plural. É a lógica do feitor, dos “bons tempos” em que “mandava quem podia e obedecia quem tinha juízo”.