Recordo-me da primeira mão levantada na minha aula. Isso foi há trinta anos. Eu falava sobre o Egito e não sabia mais que um punhado de informações decoradas. Um aluno no fundo da sala levantou a mão no momento em que eu descrevia as fases da evolução política do Egito Antigo: Antigo Império, Médio Império, Novo Império, Renascimento Saíta….pois não? Meu coração se acelerou. E se ele me perguntasse sobre algum faraó desse período saíta que eu sequer sabia por que se chamava assim? ( Hoje sei que se relaciona à capital estabelecida em Saís, neste período, como antes havia sido em Tebas, por exemplo). Olhei fixamente para ele e repeti: pois não? E ele disparou: Professor, o que o senhor sabe sobre os satélites?
Onde ele teria ouvido falar de satélites? Na televisão? Em alguma conversa de trabalho? Teria, ao ouvir falar, feito que cara? De entendido? Ou já teria assumido antes esta dúvida, expondo-se corajosamente?
E o que eu – que até hoje não sei como os satélites funcionam, nem sei se é correto chamar “ondas” de televisão e muito menos e como se dá a “mágica da transmissão ao vivo – devo ter respondido? Provavelmente devo ter alertado ao jovem aluno que a pergunta dele não guardava nenhuma relação com o conteúdo da aula e que, portanto, não era pertinente, desmerecendo qualquer resposta. É, devo ter cometido um crime destes.
Hoje reflito sobre essas memórias já desgastadas e percebo como essa minha profissão precisa ser repensada. O que faz de um professor um professor? Por que e em que medida ele pode ser útil? Um professor de jovens como eu sou ainda hoje, o que sabe da juventude que o ouve? Que escolhas deve fazer para exercer sua profissão frente a estes jovens do século XXI?
Sempre fui um decidido fã da cultura ocidental e dos arquétipos que o Ocidente desenvolveu ao longo dos séculos, forjando conceitos de primeira ordem, de caráter estruturante dos nossos discursos mais solenes: “democracia”; “família”; “trabalho”; “futuro”. Sempre acreditei que esses conceitos precisavam ser perpetuados e os “problemas” atuais estão relacionados à nossa incapacidade de fazer valer uma escola que não ensina esses conceitos básicos de nosso projeto civilizacional.
Não sei como acreditei tanto tempo nisso. Sei que, felizmente, fui ficando velho e mais perspicaz. A escola é uma lugar de vivência e não de ensino desses conceitos. Encerrar dezenas de jovens em carteiras enfileiradas, exigir silêncio e ameaçar punições e lembrar provas com poderes de aprovar ou não e depois escrever “democracia” no quadro é quase uma piada de mau gosto. Mas é assim que fazemos, muitos, durante décadas.
A escola é espaço público de construção de valores estruturantes para o mundo dos jovens e não mais para o nosso mundo que, felizmente, morrerá conosco. Não temos uma função, no sentido de cumprir um requisito para um fim. Temos um papel, de acompanhar, estimular, encorajar a construção desses estatutos para esse mundo do qual nos despediremos com lágrimas de felicidade ou de decepção.
Tudo o que chamamos de “alienação”, “despreparo”, “falta de interesse” dos jovens é mais um estímulo que uma crítica. Para construírem esse mundo novo, devem se alienar do nosso. Se se apegarem sóao que está aí, não construirão um mundo novo, mas um remendo do velho. É fato que devem beber da fonte que forja tudo, o passado, mas eles serão os ferreiros, não nós.
O despreparo é a condição da juventude. Lembram da nossa? Ou somos uma geração que já sabia tudo na juventude? E éramos igualmente educados, comportados, aplicados, formais e silenciosos como queremos que eles sejam? É fato que podemos falar em escalas, mas não falamos disso. Dizemos: “A que ponto chegou! Assim não dá. Essa geração não tem limites!” Mas qual é o ponto tolerável? Qual limite é aceitável? E mesmo esse ponto tolerável, esse limite aceitável, admitimos como um sinal de compreensão e abertura para o diálogo?
A falta de interesse, que é o desejo de estar junto, é reflexo dessa nossa mania de exercer função voltada aos fins e acreditarmos que os fins que os jovens devam almejar é o que nós determinamos e não o que eles vão escolher. O mundo será deles e não nosso. E não há muito do que se orgulhar do que estamos deixando para dizer a eles que devem “cuidar bem” da nossa herança. Se ficarmos apenas nos quesitos “ar”, “árvore” e “água”, devemos, isto sim, muito mais desculpas do que exigências.
Sempre associei minha profissão a um “sacrifício”. Horas e horas em sala, fora as leituras, as provas, as atividades burocráticas. E as reuniões pedagógicas! Nunca conheci um professor que me dissesse: “Uau, que bacana a programação dessa semana pedagógica! Vamos apender bastante, não?”. Faço parte de uma classe de profissionais que se sente sacrificada. A recompensa – o que é, ao mesmo tempo, incrível e paradoxal – vem do carinho dos alunos, do sucesso deles, da lembrança da nossa existência na vida deles. Deles, dos mesmos jovens que criticamos e acusamos de “despreparados para o futuro”. Como se houvesse uma fórmula para o futuro. E pior: como se soubéssemos que fórmula é essa!
Lamento, 30 anos depois, da resposta que não lembro ter dado ao jovem do supletivo que queria saber sobre satélites. “Eu não sei responder isso a você, meu jovem”. Mas eu deveria ter estimulado sua busca e ajudado a buscar, indicando alguma referência. Meu papel é ajudar na construção das pontes. Minha função não é a de levantar barreiras. A escola deve ser um lugar de acolhimento. As provações, a vida já garante de sobra. Nosso papel é o de compreender que interesse é construção árdua e paciente e que não se impõe; compreender que autoridade é o que se reconhece em outro e não o que se estabelece a priori; compreender que preparo é uma palavra que morreremos tentando. E que futuro, ora, o futuro é a promessa que fazemos de estarmos juntos em parte do caminho. Por isso educar é um compromisso, uma promessa que se faz juntos. E o futuro passa a existir quando decidimos juntos essa partilha do tempo e do esforço por construir pontes e traduções de um mundo cujo sentido nós damos.
Esse é o papel da minha profissão. Professor. Com muita satisfação.