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I

CARREGANDO :)

Sai pela XV sem sentir as pernas. Não acreditava que uma notícia poderia mudar tão sensivelmente minha percepção das coisas. As pessoas passavam apressadas e alegres, no sábado de sol de junho, o calçadão fervilhava de vozes e minha cabeça também. “Não é possível, eu repetia. Logo agora!”

Nesse inferno de sensações e calores, encontro meu amigo Luís e ele me conta estar pensando em ir para Cuba. “Vou com você, disse de pronto!” E fomos para a agência, ele sem entender nada.

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Resolvemos trocar Cuba pela Europa, os preços eram parecidos. Duas semanas, vários países, aquela coisa de primeira vez. Passagens compradas, bilhetes de trem, uma perplexidade que nos invadia porque nunca planejamos coisa dessas.

Em casa, minha esposa grávida ficou com os olhos vidrados, olhando o nada. Aceitou mas algo quebrou na alma dela. “Como, viajar, logo agora que estou esperando um filho dele?”

Arrumei uma mochila, nem sabia o que colocar, nunca pensei em sair do Brasil, não falava uma palavra em língua nenhuma, era um bicho do mato, brigava com porco pra disputar quentinho. O que eu ia fazer na Europa? Fui.

 

II

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Na Itália, nem pensamos em ir para o Vaticano. Esse shopping da fé, que é isso? Fomos para as ruínas, estátuas, quadros, chopes e sorvetes, um calor infernal naquele fim de junho. Logo cansamos de Roma e pensamos em ir para um lugar mais fresco e menos barulhento. Viena, lá vamos nós.

E eis que o destino armou a primeira para me por à prova: Perdemos o trem. E não haveria outro naquele dia. De volta para o quarto pulguento do hotel de terceira, ventilador de teto ligado no máximo  e nós pensando: o que fazer? Ah, tá bom, vamos ao Vaticano.

Pegamos ônibus, descemos perto e estranhamos o tanto de gente que ia para a missa. “Será que todo dia é assim?”. Não era. Era 29 de junho.

Minha confusão mental ou meu desejo de dissolver minha consciência em cansaço e cerveja fazia com que tudo perdesse brilho e vigor. Era ocre, mostarda, ocre, mostarda, lambreta, buzina e pernas, vozes, risos, sons de escapamentos, um enjoo, o Luís rápido, sempre na frente, eu acompanhando as batatas da perna dele. Chegamos ao Vaticano, comprei um crucifixo, levar para a esposa, o papa ia rezar missa, vamos lá ver o papa, por que não? Queria sentir algo, emocionar-me. Nada. Só sons e minha fúria interna. “Por que logo agora”?

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III

Depois da missa, os turistas ainda ziguezagueando, procurávamos alguém com cara de brasileiro para tirar uma foto da gente. Vimos um moreninho, magrinho. Dissemos: “Olha aquele, deve ser baiano”.  Era.  Estava sozinho e não demorou para embarcar na trupe dos desencontrados que éramos nós, sem muita vontade ou destino certo. Mas a alegria dele despertou alguns bons sorrisos em mim, foi bom.

Elétrico, ele olhava para todos os lados ao mesmo tempo, sem querer perder nada daquela pedraria. Numa das olhadas, gritou, entusiasmado: “Olha lá D. Lucas Moreira Neves!”.

 

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Cardeal primaz do Brasil, parente do falecido Tancredo, D. Lucas estava ali mesmo, dando sopa. Ora, vamos tirar uma foto com ele. E fomos. O destino deu seu segundo passo….

“Vocês querem que eu mostre a igreja para vocês?” ele perguntou, como se fosse normal o Cardeal Primaz se oferecer de guia para três desocupados. Balbuciamos algo que era um evidente sim e ele começou logo a falar. “Vamos por essa porta sagrada, que só é aberta de 25 em 25 anos. A basílica tem 186 metros, começou a ser construída em 1499, essa pedra da entrada é a que Carlos Magno foi coroado. Até aqui foram 277 papas e no dia de S Pedro vestem a estátua bizantina que representa São Pedro de papa também. Vejam os quadros, são de mosaico, olhem essas estátuas dos papas, reparem nessa vazia, é de Gregório XIV, porque ele consumiu todo o ouro e diamante do Vaticano como remédio. Pio IX foi o único papa que ficou mais tempo no cargo que S. Pedro, 32 anos. Olha, veem essa estátua com abelhas no escudo? É de Urbano VIII. Olha lá, no fundo do altar. É a Glória de Bernini, representa os santos canonizados. Aliás, esse Alexandre VII foi a última obra dele. Ele quem fez a praça de São Pedro, sabiam?

Nós sem palavras, ele falando, calmo, sereno, apontado aqui, lá, tantas imagens e artes e a voz dele ia em um enlevo, quase um canto. “Olhem a Pietá, que linda! Miguel Ângelo tinha 24 anos quando a esculpiu. Tanto que todos a admiravam mas pensavam ser de outro escultor por causa disso. Daí o jovem escultor ter esculpido no colo da virgem uma frase: Miguel Ângelo fez.

Era 12:25. Passou-me pela cabeça a  ideia de que pairava um ar meio sagrado sobre as imagens, as luzes que entravam na grande nave, os ecos dos sons ressoando. Talvez fosse apenas a voz de D. Lucas. Talvez fossem as vozes dentro da minha cabeça: Por que isso, nesse momento da minha vida?

Demos a volta completa e nos aproximamos de novo da grande porta. Fomos diminuindo o passo e paramos. Era o fim da viagem. Minha cabeça explodia de sensações e resolvi dizer, ou não, disse sem decidir nada: “Padre, o senhor foi tão gentil , hoje é dia de S Pedro, eu terei um filho chamado Pedro, o senhor poderia inclui-lo em suas orações?

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IV

Nunca esquecerei aquele olhar do padre que sabia o que se passava comigo. Minha mente voltou para o sábado, para o consultório médico, para receber os exames que resolvi fazer porque teria um filho e eu sempre gordo e estressado e aquela dor de cabeça e insônia e tudo, eu precisava estar bem, eu teria um filho agora, esperei sete anos para resolver tê-lo, ter condições de cria-lo, uma vida que pudesse oferecer para ele, fui fazer os exames, tudo deve estar bem e então aquele médico, o sorrisinho sádico, nunca esquecerei a desumanidade daquele cidadão, “olha Daniel, há uma ervilhazinha aqui no seu cérebro. Se for maligno, não tem como tirar”. E eu penso ter perguntado “e agora, doutor? E ele: “Não há o que fazer. Reze para que não seja maligno”. E eu: “Obrigado, vou fazer os outros exames, está bem, agora preciso ir” . E ainda acredito ter ouvido a risadinha do infeliz. E então a minha própria voz: “ Logo agora? mas eu teria um filho e ele não teria pai?”

E o padre olhou para mim e só para mim e disse olhando para mim, firmemente, mas a voz calma: “Eu farei isso agora mesmo!” E ajoelhou-se, na nossa frente, ali, o cardeal primaz, o homem que o destino armou para que eu perdesse o trem e achasse o baiano e seguisse o padre pelo tour na igreja de pedra e nomes e estátuas e mosaicos e então ali, de joelhos, na minha frente e então eu sabia que havia uma chance. Eu poderia vencer a maldita ervilha e poderia ver meu filho nascer, crescer, sorrir, andar, amar, buscar seu destino e suas fórmulas de felicidade.

Fui ao Vaticano e não vi Deus. Mas vi o Homem. E naquele momento, amei a Humanidade dele.

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