Recentemente, a OAB/PR promoveu alentado congresso sobre a liberdade econômica e eu recebi o honroso convite para proferir a conferência de abertura. O desafio era tratar da Lei 13.874/2019, a “lei de liberdade econômica”, e o exercício da advocacia. Afinal, o que nós, advogados, temos a ver com ela?
Se pensarmos bem, a liberdade econômica é um dos direitos fundamentais mais longevos do nosso constitucionalismo. Vem prestigiado desde a Carta Imperial de 1824, com estatura equivalente aos demais direitos de primeira geração (que se prestam a inibir arroubos interventivos públicos na vida privada). Ao exercer sua profissão, também os advogados põem em marcha direito declarado e garantido pela Constituição brasileira. Mas não é só isso.
A Constituição prevê, logo em seu preâmbulo, que o Estado brasileiro é instituído para “assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais”. Veja-se bem: os Poderes Públicos existem para garantir que os direitos individuais sejam postos em prática. Ao Estado compete prestigiar ativamente o exercício de direitos individuais, dentre estes a liberdade econômica, que é insistentemente tratada em vários artigos da Lei Fundamental brasileira.
O art. 1º define como fundamento da República o valor social da livre iniciativa, lado a lado com o trabalho (inc. IV). A liberdade econômica é essencial à República Federativa do Brasil, uma de suas razões de existir e parâmetro cognitivo de todo o sistema jurídico. O que permite que nos conscientizemos de sua real dimensão, refletida no capítulo dos direitos e deveres fundamentais.
Isso porque o art. 5º da Constituição preceitua o devido processo legal como garantia das liberdades (inc. LIV). Ela são conaturais ao ser humano e, também por isso, indevassáveis: “ninguém será privado da liberdade ou de seus bens sem o devido processo legal”. Na justa medida em que a Lei Fundamental declara e protege a liberdade econômica, os Poderes Públicos estão proibidos – de qualquer forma, por qualquer meio (direto ou indireto), em qualquer momento – de privar as pessoas privadas de seu legítimo exercício.
A liberdade econômica é direito fundamental e a advocacia constitui um dos modos de seu o exercício
Talvez o mais importante esteja no parágrafo único do art. 170 (“É assegurado a todos o livre exercício de qualquer atividade econômica, independentemente de autorização de órgãos públicos, salvo nos casos previstos em lei”), que abre o capítulo da Ordem Econômica constitucional. Esta norma dá coerência aos princípios enumerados no próprio art. 170, congregando-os. Lá está o direito-garantia da liberdade como o vetor que convive com a dignidade da pessoa, o meio ambiente equilibrado, o direito do consumidor, a função social da propriedade, o valor social do trabalho, etc. Todas as pessoas são titulares do direito fundamental a exercitar a liberdade econômica, sem licenças ou autorizações (exceções feitas às restrições legais). Não se trata de laissez-faire inconsequente, mas liberdade com responsabilidade. O que se avulta ao pensarmos na profissão de advogado e seu status constitucional.
Sobre ser indispensável à administração da Justiça (art. 133), a advocacia é direito fundamental previsto no art. 5.º, inc. XIII (“livre exercício de qualquer trabalho, ofício ou profissão, atendidas as qualificações profissionais que a lei estabelecer”), cuja máxima efetividade é dada pela Lei 8.906/1994 (Estatuto da OAB). Lá, estão positivados os direitos e deveres de todos os advogados. Porém, há algo a mais, que distingue, enobrece e aumenta enormemente a nossa responsabilidade.
Muito mais do que a liberdade de profissão, o exercício da advocacia representa o direito fundamental de defender direitos fundamentais. É por meio dela que direitos fundamentais são defendidos. Precisamos ter consciência desse encargo, a pautar nossos deveres profissionais. Nenhuma outra profissão tem tamanha beleza e compromisso: “a dor e a delícia / de ser o que é”, como diria Caetano. Por isso que dispomos das prerrogativas e somos balizados pelos deveres legais e éticos.
As prerrogativas da advocacia, previstas no Estatuto, são garantias indeclináveis. Reforçam a liberdade para a defesa das liberdades de terceiros; em honra ao privilégio e ao mandato que nos são outorgados. Não são favores, não protegem o profissional, mas o exercício da advocacia. Por isso, inabdicáveis. Os advogados não dispõem de autonomia de vontade em face delas, eis que obrigados ao seu cumprimento. Não será demais dizer que protegem a advocacia de modo subjetivamente irrestrito, inclusive em face dos próprios advogados. Advogado que pretender abdicar das prerrogativas não merece esse título.
E o mesmo se diga da ética profissional, estampada no Código, ao especificar os deveres do advogado para com seus colegas, instituições públicas e clientes. E determina que cabe à OAB autorregular, fiscalizar e punir os desvios éticos. Sem respeito integral à ética da profissão, a pessoa não merece estar nos quadros da OAB. Isso exprime a contraface do privilégio de sermos os únicos a postular judicialmente e aconselhar juridicamente. Tal como as prerrogativas, a ética é dever indeclinável, que protege a advocacia.
Nesse cenário, foi promulgada a Lei 13.874/2019, que declara os direitos de liberdade econômica. Ela dá aplicação imediata à proteção constitucional à livre iniciativa e ao exercício de atividades econômicas. O que abrange o direito de advogar – e o dever de defender tais liberdades.
O assunto fundamental da Lei 13.874/2019 é a ordenação social (o antigo “poder de polícia administrativo”), aquela parcela do direito público que se destina a limitar o exercício das liberdades individuais em favor do bem comum. Até pouco tempo atrás, não havia fronteiras claras a essa intervenção estatal na vida privada – nem fonte normativa que a parametrizasse (em desobediência ao já mencionado par. ún. do art. 170). Agora, a lei preceitua limites aos limites, “inclusive sobre exercício das profissões” (art. 1º, § 2º).
Trata-se de norma geral de Direito Econômico (art. 1º, § 4º), nos termos do art. 24 da Constituição. A sua fonte normativa é o Congresso Nacional, com incidência multifederativa: atinge a União, estados, Distrito Federal e municípios. Não existe imunidade à Lei de Liberdade Econômica, que tem como um de seus pontos centrais os “atos públicos de liberação” (art. 1º, § 6º). Isto é, aqueles atos administrativos que estabelecem requisitos ao exercício das liberdades.
Quais seriam, portanto, as repercussões da Lei 13.874/2019 na atividade de advocacia? São muitas, tanto no relacionamento direto dos advogados com os poderes públicos, quanto no exercício da advocacia em favor de seus clientes, como na defesa das prerrogativas e deveres éticos pela OAB. Destes assuntos, dois assumem especial relevância: a vedação expressa à exigência de alvarás para atividades de baixo risco e a proibição ao abuso regulatório.
Sem conferir significado específico à expressão, a Lei de Liberdade Econômica veda a necessidade de alvará – e seus equivalentes - para toda e qualquer “atividade econômica de baixo risco” (art. 3º, inc. I, e § 1º, inc. I). Muito embora a definição de “baixo risco” dependa de regulamento, é certo que existem zonas de certeza positiva e negativa para sua compreensão. Por exemplo, dúvida não pode haver de que oficinas mecânicas, consultórios de dentistas ou um salão de beleza são atividades de baixo risco. Já, a loja de fogos de artifício, não é de baixo risco – e o mesmo se diga de bancos ou depósitos de gás.
No que respeita aos advogados, é nítido que escritórios pequenos e médios, localizados em instalações urbanas regulares, são atividades de baixo risco. A certeza é positiva, em todos os níveis federativos: os Poderes Públicos são proibidos de exigir alvarás como requisito à liberdade de empresa advocatícia. Todavia, um escritório gigante, com milhares de colaboradores, que cause grande impacto no trânsito, nas instalações elétricas e na vizinhança, pode não se submeter ao conceito: a zona, aqui, é de incerteza (e o ato regulamentar deverá esclarecer essa área nublada).
O segundo dos assuntos que pretendo tratar diz respeito às garantias contra o “abuso regulatório” (Lei 13.874/2019, art. 4º), que deve ser evitado pela “administração e demais entidades a que se vinculam esta lei”. Quais são as hipóteses, exemplificativas, que a lei define como abuso regulatório? Algumas merecem destaque: reserva de mercado (art. 4º, inc. I); impedir ou retardar novas tecnologias (art. 4º, inc. IV); limites à formação de sociedades empresariais ou atividades econômicas (art. 4º, inc. VII) e restringir o uso e o exercício da publicidade e propaganda sobre um setor econômico (art. 4º, inc. VIII). O regulador está impedido de exercitar poder de polícia limitador desses modos de exercício da liberdade econômica. Claro que aos advogados cumpre a defesa de tais direitos. Todavia, será que as proibições incidem sobre a OAB? Ela seria uma das “demais entidades”? Parece-me que não.
A Lei de Liberdade dirige-se a formas heterônomas de restrição de liberdades, exercidas por órgãos e entidades públicas, no exercício das competências atribuídas por lei (Constituição, art. 170, par. ún.). Todavia, o art. 4º da Lei 13.874/2019 não se reporta à autorregulação profissional. Mesmo porque, quando se fala em OAB, não se estuda o “poder de polícia administrativo”, mas autolimitações elaboradas pelos próprios integrantes da profissão: são os advogados a se autorregular. O que não importa dizer que se possa ignorar o art. 4º: apesar de seus temas não configurarem proibições à autorregulação, são importantes vetores a instituir novas cogitações para a OAB.
Muito mais poderia ser dito, mas já se pode constatar que, quando se fala em advocacia, está-se a se tratar do direito fundamental de livremente advogar em favor das liberdades. Por outro lado, a liberdade econômica é direito fundamental e a advocacia constitui um dos modos de seu o exercício. Ela principalmente existe para defender direitos fundamentais, o que se reflete no respeito às prerrogativas e à ética profissional: liberdades, com responsabilidade. Enfim, nós, advogados, temos tudo a ver com a liberdade econômica.
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