Durante décadas, propagou-se no Brasil a fábula de que serviços públicos existiriam num mundo sem escassez. Não faltaria nem verba nem infraestrutura para serem prestados. Jamais experimentariam aumentos ou reajustes. Poderiam ser usufruídos de modo abundante, com custos baixos ou inexistentes. Tudo o que nos trouxesse benefícios poderia ser apelidado de serviço público e se revelaria na fartura. A Constituição garantiria todos esses serviços, a todas as pessoas, de modo absoluto, sem quaisquer restrições ou condicionantes.
Isso se deu no meio político (o que até é admissível), mas também no ambiente jurídico, acadêmico e jurisprudencial (o que é inexplicável). Ocorre que essa narrativa popular de fatos puramente imaginados foi derrubada pela realidade, agora de forma irreversível. Mas como isso se deu?
A escassez dos serviços públicos ingressou nas nossas vidas de forma brutal. Descobriu-se o óbvio: os recursos – financeiros e naturais – são escassos
Comecemos pela origem. A ideia brasileira de serviços públicos deve muito à teorização francesa. Parte dessa construção acadêmico-jurisprudencial foi erguida há 100 anos, originalmente conferindo à expressão sentido idêntico ao que hoje denominamos de “administração pública” (conjunto de órgãos e atividades cometidas ao Estado). Com lastro nos escritos de um gênio chamado Louis Rolland, que criou as “leis” do serviço público (as “leis de Rolland”), tornaram-se populares as noções de continuidade, mutabilidade, igualdade, neutralidade, laicidade etc. Essa concepção transpôs o Atlântico e aportou dentre nós (todavia, não trouxe consigo nem a França nem o sistema jurídico francês...).
Assim, desde meados do século passado repete-se à exaustão o mantra das “leis do serviço público” (ou “princípios do serviço público” – estes, até, mais charmosos que as pobres leis). Como as boas leis da física, tornaram-se verdades primárias do sistema de prestação de serviço público brasileiro.
Tanto isso é verdade que a Lei 8.987/1995 diz que toda concessão ou permissão de serviço público “pressupõe a prestação de serviço adequado ao pleno atendimento dos usuários”, definindo-o como “o que satisfaz as condições de regularidade, continuidade, eficiência, segurança, atualidade, generalidade, cortesia na sua prestação e modicidade das tarifas” (art. 6.º e § 1.º). Aquilo que na origem foi uma construção dogmática francesa transformou-se em direito positivo brasileiro.
Mas, com base na largura semântica desses princípios, vale (quase) tudo: desde a interpretação que dá à “modicidade das tarifas” o significado de “preços abaixo dos custos” e “isenções ilimitadas” como na interpretação da “continuidade” como a impossibilidade de corte do fornecimento (até para aqueles que podem pagar, mas consomem e não pagam). Afinal, em serviços públicos não há escassez.
Esse raciocínio inverte a lógica de qualquer equação de receita e despesa. Assim, há quem defenda rodovias com muitas obras e pedágios baratos; energia sem fim e sem preço; telecomunicações gratuitas; água e esgoto a preço de liquidação; isenções a rodo etc. Assuntos que habitam as notícias de jornal. O cenário é o de tarifas baixas conjugadas com um fato externo, que impede qualquer ressarcimento estatal: a defesa de que impostos não podem ser majorados.
Ocorre que essa mistura de boas intenções com vieses não realistas do que significa a efetiva prestação de um serviço público – bens e comodidades implementadas com altos custos e oferecidas aos usuários mediante a indispensável contrapartida do pagamento – corrompeu a interpretação das leis e, até mesmo, da Constituição brasileira. O ideário dogmático atrapalhou a aplicação do direito.
Os serviços públicos exigem investimentos e geram prestações que precisam ser pagas por alguém (o consumidor ou o contribuinte)
Isso fez com que a fábula subvertesse a si mesma e, em vez de ilustrar um preceito moral (como nas de Esopo), institucionalizasse práticas imorais (quando não ilegais). Estas podem ser sintetizadas na ideia de que os contratos de prestação de serviço público não precisam ser respeitados. Ao contrário, devem ser esbanjados. Afinal, não existiria qualquer escassez para a sua prestação e haveria direito fundamental ao uso e gozo sem pagamento. O que implica incentivos ao inadimplemento. Pular catracas de ônibus, fazer “gato” de energia e furar cancelas de pedágio se transformaram em práticas “viralizadoras” nas redes sociais. Mas fato é que enaltecem o ilícito.
Hoje, essa situação mudou. Acelerada por eventos dramáticos, a promessa da fábula revelou-se impossível de ser cumprida. Com a trágica combinação de crises que hoje vivemos – o estado do Paraná, nestes dias covidianos, passa pela pior crise hídrica dos últimos 100 anos –, a escassez dos serviços públicos ingressou nas nossas vidas de forma brutal. Descobriu-se o óbvio: os recursos – financeiros e naturais – são escassos. Assim como a água, o dinheiro (público e privado) precisa ser poupado para persistir no tempo.
Necessário se faz realizarmos – tornarmos real – o fato de que os serviços públicos exigem investimentos e geram prestações que precisam ser pagas por alguém (o consumidor ou o contribuinte). Logo, não são abundantes e intermináveis. Para que sejam usufruídos pelas futuras gerações, também os contratos de serviços públicos precisam ser tratados com respeito.
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