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Foi pautado pelo STF o julgamento de caso que decidirá se a Constituição brasileira acolhe (ou não) a competência do TCU para fiscalizar a OAB. Trata-se do Recurso Extraordinário 1.182189-BA, em que o relator, ministro Marco Aurélio, já disponibilizou voto em que fixa a seguinte tese de repercussão geral: “A Ordem dos Advogados do Brasil está submetida a fiscalização pelo Tribunal de Contas da União”.
Coerente com sua conclusão, o ministro consigna que a OAB se encaixaria na previsão do parágrafo único do artigo 70 da Constituição (“Prestará contas qualquer pessoa física ou jurídica, pública ou privada, que utilize, arrecade, guarde, gerencie ou administre dinheiros, bens e valores públicos ou pelos quais a União responda, ou que, em nome desta, assuma obrigações de natureza pecuniária.”). O TCU estaria autorizado a auxiliar no controle externo, de titularidade do Congresso Nacional, da OAB. Pode-se imaginar que o próximo passo seria a aprovação (ou não) das contas da OAB pelo Poder Legislativo.
Muito embora o voto sublinhe que, nos termos da Lei 8.906/1994, a OAB não tenha qualquer vínculo com a administração pública, ainda assim entende que ela exerceria atividade pública não estatal submetida à prestação de contas ao Congresso Nacional. Isso também resultaria do fato de ela se voltar “a objetivos ligados à preservação do Estado brasileiro” e não apenas à disciplina da profissão de advogados.
Os argumentos do voto de Marco Aurélio são bastante sedutores – e, por isso mesmo, perigosos
Igualmente bastaria, como consta do voto, “a natureza de ‘coisa pública’ dos recursos para estar configurada a sujeição ao controle”. O que adviria da compulsoriedade da cobrança das anuidades (a implicar o recolhimento de valores da ordem de centenas de milhões de reais). O TCU exercitaria controle externo quanto “à arrecadação e ao emprego de aportes de cada profissional inscrito”. Uma vez que a OAB exerceria função pública em seus afazeres, bem como arrecadaria volume significativo de verbas públicas de seus associados, sua natureza e seu regime jurídico seriam os de direito público.
Os argumentos do voto são bastante sedutores – e, por isso mesmo, perigosos. Não abrimos mão de, respeitosamente, refutá-los.
Conforme descrito, haveria três razões que justificariam a tese proposta no voto: a natureza pública da OAB; a compulsoriedade de suas anuidades; e os valores envolvidos. Todavia, nenhuma dessas ideias se sustenta. Comecemos pela natureza dita pública da OAB.
Para o voto, porque criada por lei e desenvolvedora de ações de interesse público, a pessoa que congrega os advogados exerceria funções equivalentes às das instituições públicas (como as autarquias). Isso levaria consigo o dito regime jurídico de direito público (aquele que suprime a autonomia da vontade das pessoas que o integram, submetendo-a à lei). Os interesses detidos pela OAB seriam, portanto, indisponíveis: daí a necessidade de seu controle externo. Argumento que não parece resistir ao teste da realidade.
Ao que se infere, o voto dividiria os regimes jurídicos em apenas dois, impermeáveis entre si como água e óleo: onde não houver só o direito privado, sempre haverá o direito público. Ali, liberdade e autonomia; aqui, submissão a objetivos públicos transcendentes autorizadores da fiscalização pelo Poder Legislativo. Não se controlaria a liberdade, mas situações de interesse público decorrentes da natureza da OAB. Porém, nem o direito nem os fatos são assim. Essa divisão estanque simplesmente não existe, o que impede sua aplicação a casos como o da OAB.
Por exemplo, de há muito, o direito civil flerta com o direito constitucional, levando para dentro de si preceitos típicos de direito público (a escola do “direito civil constitucional”). O reverso também se dá no direito administrativo, que se senta à mesa com os direitos empresarial e civil (e, às vezes, os janta – mas isso é assunto para outro artigo). Isso sem se falar no direito penal e respectivos acordos de colaboração premiada (em que a autoridade transaciona a pena – negociando o outrora indisponível). Nada é tão nítido e seccionado como talvez um dia tenha sido.
Eventualmente, há situações jurídicas em que essa divisão ainda exista em seu estado bruto, mas esse não é o caso da OAB. Entidade de autorregulação que é, ela mescla os regimes jurídicos e confere especial identidade ao exercício da liberdade associativa. Sua pureza advém da mistura, da mestiçagem entre os regimes. O que importa dizer que sua natureza e seu regime jurídico podem ser qualquer coisa, menos de direito público puro e simples. Não é assim que as coisas são no direito positivo brasileiro.
Pouco importa a sua fonte normativa criadora e o modo da arrecadação de seu caixa: a OAB pauta-se pela mais absoluta liberdade, e por isso é preciso vê-la garantida
Como Marçal Justen Filho bem sublinha em seu livro Introdução ao Estudo do Direito, o que hoje existe é o efeito prático de tendências que “consiste na conjugação dos regimes de Direito Público e de Direito Privado”, com nuances permissivas de “sua coexistência mais próxima”. Nessa justa medida, não existe a summa divisio. O critério da “natureza de direito público”, por si só, de nada vale (eis que vazio).
Constatação que se agrava no caso da OAB, que, sim, foi criada por lei e cobra anuidades compulsórias para todos aqueles que, de livre e espontânea vontade, desejam exercer a profissão de advogado. Ela é entidade de autorregulação profissional, que administra, disciplina e controla o exercício da profissão de advogado – tal como definido em seu estatuto. Supor que a OAB exerceria o démodé “poder de polícia administrativo”, como se Estado oitocentista fosse, revela desconhecimento do atual estado de arte do direito administrativo ordenador e do funcionamento da OAB. Pretende atar o presente a um passado que não mais existe.
As ações da OAB, quaisquer delas, são democrática e autonomamente definidas por seus integrantes – seja por meio de votações dos conselhos, seja através da eleição de seus presidentes (seccionais e nacional). O que importa dizer que impera a disponibilidade dos direitos da OAB, eis que definidos consensualmente e interna corporis. Ela faz o que seus associados decidem: nada mais, nada menos.
Pouco importa, portanto, a sua fonte normativa criadora e o modo da arrecadação de seu caixa: a OAB pauta-se pela mais absoluta liberdade. Por isso precisa vê-la garantida, a fim de bem desempenhar, sem amarras, o papel que lhe cabe na ordem democrática. Liberdade de ingresso em seus quadros; de eleição de seus membros diretores; de exclusão de seus associados; de gestão de seus bens, e, mais importante de todas, de definição de suas escolhas de interesse público. Liberdade: esse é o seu alfa e o seu ômega.
Por isso que na OAB não há – e nem pode haver – quaisquer contornos que não os definidos exclusivamente por seus próprios membros, especialmente no que respeita ao seu controle. Liberdade privada submetida a perene fiscalização e aprovação de órgãos públicos é uma contradição em termos. Por isso não cabe a aplicação dos artigos 70 e 71 da Constituição, eis que o exercício de tal liberdade não se submete à aprovação de quem quer que seja, sob qualquer aspecto de seu exercício. Se houver irregularidades ou ilicitudes, que sejam punidas nos termos do Estatuto da OAB – ou pelo direito penal.
Insista-se: todas as ações adotadas pela OAB decorrem da liberdade de escolha de seus membros e dirigentes – inclusive aquelas que visam à tutela do interesse público. Situação que não é exclusiva da OAB, convenhamos. Se prestarmos atenção, quase todas as associações privadas possuem legitimidade adequada para a tutela do interesse público em ações coletivas – e o mesmo se diga das ações diretas de constitucionalidade e pedidos de impeachment (como o fez a Associação Brasileira de Imprensa, lado a lado com a OAB, no caso Collor). Nem por isso cabe ao TCU investigar os conselhos de médicos, dentistas e jornalistas – e aprovar (ou não) as suas contas.
Entidade privada que é, arrecadadora de recursos privados (só) de seus associados, a OAB nem sequer se aproxima dos requisitos indispensáveis à fiscalização externa pelo TCU
Por fim, a dita compulsoriedade das anuidades tampouco autorizaria o controle externo pelo TCU. Em primeiro lugar, pela estrutura federativa multinível da OAB, inclusive quanto ao recebimento e administração de suas receitas. Em segundo, pela espontaneidade no ingresso na OAB: todos os seus membros praticam livremente o ato-condição de se incorporar à associação profissional e aceitar as regras postas. Em terceiro, porque a verba não é tributária, eis que nem toda arrecadação compulsória – sobretudo aquelas que decorrem da livre escolha do exercício de uma profissão – é igual a tributo. Em quarto lugar, o volume das receitas arrecadadas não é informação hábil a instalar o controle – o critério constitucional não é esse.
Os bens e valores arrecadados e geridos pela OAB simplesmente não são públicos. Este adjetivo se reserva àqueles bens e valores que configurem receitas fazendárias, advindas de movimentação financeira estatal. Entidade privada que é, arrecadadora de recursos privados (só) de seus associados, a OAB nem sequer se aproxima dos requisitos indispensáveis à fiscalização externa pelo TCU, órgão auxiliar do Congresso Nacional.
Enfim, o tema em causa não se limita a jogo de siglas. Nem a concepções que pretendem ampliar a competência do TCU a casos inéditos (como tive a oportunidade de refutar aqui). O que está em questão é a defesa da liberdade de uma associação profissional. Se não só falamos de liberdade, mas sim a incorporamos ao que entendemos por OAB, não se pode cogitar de controle externo por órgão integrante do Congresso Nacional. Sobre não fazer sentido, não é autorizado pela Constituição.
Conteúdo editado por: Marcio Antonio Campos