Costumamos enxergar a Constituição como o documento normativo fundamental que declara e garante direitos, além de definir os poderes públicos e sua organização. Isso é bem verdade, mas não é só isso.
Seria um tanto simplista pressupor que a norma fundamental, que visa a disciplinar as complexas relações sociais contemporâneas, se restringisse – e isso é o que mais importa neste artigo – a expandir as liberdades das pessoas. Como se vivêssemos num mundo só de direitos, regido pela irresponsabilidade e falta de consciência social. Crianças eternamente brincando em campos de centeio. Nada disso se passa, eis que, além dos direitos, a Constituição também estatui deveres fundamentais.
Bem verdade que teorizar a respeito de deveres é um tanto antipático. É sempre melhor, mais popular, conversar sobre liberdades e vantagens. Todos gostam de se arrogar direitos, mas ninguém gosta de cumprir obrigações. Sobretudo os deveres fundamentais, que, à semelhança dos direitos, não requerem bilateralidade para serem exigidos. Porque positivados em sede constitucional, são naturalmente exigíveis de todos os habitantes.
A Constituição, em seu artigo 196, preceitua o dever fundamental de respeito à saúde – própria e alheia
Todos sabemos que os direitos fundamentais – e nos concentremos na saúde – são imediatamente constitucionais e oriundos, pura e simplesmente, da condição humana. No constitucionalismo brasileiro, decorrem da beleza constitucional que institui a solidariedade como pedra de toque da convivência. Todos temos declarado e garantido o direito à saúde, sem qualquer discriminação ou condicionantes. Assim, para que usufruamos de atendimento médico no Sistema Único de Saúde (SUS), não é preciso pagar.
Porém, fato é que tais serviços têm custos. Bens e pessoas, produtos e serviços que, ao mesmo tempo que nos salvam, são remunerados pelo Estado. Este, ao seu tempo, cobra tributos daqueles que dispõem de capacidade contributiva. E aqui já podemos conversar a propósito dos deveres, começando por um dos mais importantes: o dever fundamental de pagar impostos (para tomarmos emprestado o título do magnífico livro do professor Casalta Nabais). Em Estados fiscais como o brasileiro, cujas receitas advêm prioritariamente do pagamento de impostos, taxas e contribuições, o bem-estar social exige o correspondente dever fundamental de pagar tributos. Pagamos porque a Constituição os exige; como corolário da dignidade humana.
Mas nem só de tributos vivem os deveres fundamentais, eis que a saúde pública também é um deles. Ao lado, por exemplo, do dever de respeito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado (artigo 225), da educação (artigo 205) e do dever de amparo às crianças e idosos (artigos 227 e 229), a Constituição, em seu artigo 196, preceitua o dever fundamental de respeito à saúde – própria e alheia (“A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.”). Dispositivo cuja importância se acentua em tempos da atual pandemia.
- Opinião da Gazeta: O coronavírus e a mais recente “revolta da vacina”
- Vacinação é assunto político ou caso de Justiça? (artigo de Sebastião Ventura, publicado em 29 de outubro de 2020)
- Por que as vacinas devem ser gratuitas (e obrigatórias)? Um olhar econômico (artigo de Matheus Albergaria, publicado em 28 de outubro de 2020)
Como em outras doenças viróticas, a Covid-19 é um mal que se alastra por meio do contágio entre pessoas (a contaminada a transmitir para terceiros). Por isso, exige que adotemos, obrigatoriamente, condutas que inibam o contágio. O isolamento social e as máscaras, por exemplo, põem em ação o respeito e a preservação da saúde (própria e alheia). Comportamentos que dão configuração especial ao dever fundamental de saúde pública. Da mesma forma que a Constituição nos confere o direito de exigir que os poderes públicos nos prestem assistência médico-hospitalar, também nos imputa o dever de nos comportarmos de molde a preservar, sem discriminações, a saúde alheia (individual e coletiva). Trata-se do dever de obediência às “políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco da doença”. Não há escolha nem bilateralidade no cumprimento desse dever: ele é autônomo, imediatamente constitucional e exigido para que também cuidemos do próximo.
Não faria sentido algum supor que a norma constitucional prestigiaria opções egoístas em termos de saúde pública, como se ela fosse exigível somente sob a perspectiva dos direitos fundamentais. Ou como se o exercício desses direitos fosse apto a gerar gravames individuais e coletivos. Tal como o meio ambiente ecologicamente equilibrado, o bem “saúde pública” não só transcende, mas verga o individualismo. Mais: nem sequer é de titularidade do Estado-administração. Trata-se antes de um bem comum, de caráter supraindividual, cuja proteção faz disparar o exercício da função administrativa, simultaneamente aos deveres fundamentais da pessoa humana.
Por isso que, em termos constitucionais, a questão da vacinação obrigatória parece-me de clareza solar: não é uma escolha, mas dever fundamental da pessoa humana.
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