Villa-Lobos, a voz musical de seu povo| Foto:

Heitor Villa-Lobos, que nasceu há 130 anos (Rio de Janeiro, 5 de março de 1887), inventou um típico universo sonoro e musical que identifica com facilidade o Brasil. Já aos 30 anos de idade Villa-Lobos possuía de forma completa a sua típica linguagem, com a qual se expressaria com formas bem diversas, ora clássicas (Sinfonias, Quartetos) ora livres (Choros, peças para piano). A partir de Uirapurú (balé de 1917) o som orquestral de Villa-Lobos faz uma espécie de retrato definitivo musical da natureza brasileira. Se as influências iniciais de Villa-Lobos foram Debussy e Stravinsky, a partir dos anos 1920 percebe-se um vocabulário altamente individual e original. Nesta década temos suas obras mais revolucionárias e experimentais como o seu Noneto de 1923 (apesar do título para sua execução são necessários dezenas de cantores e instrumentistas) e seu Rudepoema (1921/1926), uma obra para piano fora de qualquer padrão pré-estabelecido. Neste mesmo ímpeto vanguardista estão seus Choros (1920-1929) e sua Prole Do Bebê Nº 2 (1921) e marca sua participação na Semana de arte moderna de 1922 em São Paulo. Com permanências longas na Europa entre 1923 e 1930 o compositor teve contato com a estética neoclássica reinante por lá, e na sua volta esta orientação “back to Bach” o leva, na sua volta definitiva ao Brasil, a escrever as suas 9 Bachianas brasileiras (entre 1930 até 1945). Nestas composições a natureza é aliada a um aspecto mais humano dos brasileiros que convivem com a miséria e a angústia, um traço que passa a permear de forma constante sua linguagem. Sua Bachianas brasileiras Nº 2, por exemplo, é o mais contundente retrato do sofrido homem rude do sertão, algo equivalente a certas pinturas de Portinari e certos livros de Rachel de Queiroz (O quinze), Graciliano Ramos (Vidas secas) e Guimarães Rosas (Grande sertão: Veredas). A perspicácia humana do compositor faz com que, depois de sua morte, sua música sirva perfeitamente de trilha sonora para duas obras primas do cinema brasileiro, dirigidas por Glauber Rocha: Deus e o diabo na terra do sol (1964) e Terra em transe (1967). A conclusão é que a música de Villa-Lobos retratou com grande arte não só a natureza brasileira, mas as dores e alegrias de seu povo.

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Villa-Lobos, o didata

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Durante o governo de Getúlio Vargas (1930-1945) Villa-Lobos empreendeu o mais importante programa de educação musical que o Brasil já teve até hoje. Com forte apoio do governo estrutura um ambicioso programa de educação musical (Canto orfeônico), educação esta que passou a ser obrigatória. É desta época o importantíssimo “Guia Prático”, uma coletânea de mais de 130 melodias folclóricas arranjadas para coro e para piano solo, muitas de cunho infantil, que teriam sido perdidas sem este trabalho. Uma época de um patriotismo exacerbado de obras como Invocação à defesa da Pátria (1943- texto de Manuel Bandeira) e a trilha sonora do filme O descobrimento de Brasil, filme de Humberto Mauro de 1936, que levaram o compositor a ser criticado com seu comprometimento com o Estado Novo. Para Villa-Lobos este comprometimento não passava por qualquer viés ideológico e sim por uma oportunidade de ouro para divulgar e praticar a atividade musical.

Uma produção importante, imensa e ainda mal conhecida

Com mais de 1000 obras Villa-Lobos é um dos mais prolíficos compositores de todos os tempos. Infelizmente só uma pequena parte desta excepcional produção é conhecida. Não há dúvida de que a obra clássica brasileira mais conhecida internacionalmente é de sua autoria, a Ária da Bachianas brasileiras Nº 5. Mas também não há dúvida de que já existe um consenso de que suas obras para piano e violão estão entre os itens mais importantes do repertório internacional destes instrumentos. Villa-Lobos foi o mais importante compositor que dominava perfeitamente a técnica do violão, e isto faz com que sua produção para este instrumento seja obrigatória para qualquer violonista do planeta. Aliás quando falamos da obra de violão do mestre percebemos que ela será a parte mais importante de sua produção a influenciar a MPB. Exemplo claro disso são seus Cinco Prelúdios para violão de 1940 que abrem o caminho para as harmonias da Bossa Nova, de Tom Jobim a João Gilberto. Ele foi também violoncelista, o que lhe permitiu escrever obras primas para Orquestras de Violoncelos (Bachianas brasileiras Nº 1 e Nº 5) que são executadas com enorme frequência de Berlim a Tóquio. Aliás esta é mais uma influência de Villa-Lobos na música popular. O violoncelo é o instrumento de orquestra mais presente nos shows de MPB. A influência de Villa-Lobos parece mesmo ser eterna.

Repertório obrigatório. Discoteca básica:

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Villa-Lobos por ele mesmo (Villa-Lobos par lui même) – Uma coletânea da EMI com gravações regidas ou supervisionadas pelo próprio compositor realizadas em Paris na década de 1950. Mesmo que novas gravações surgiram com técnicas mais modernas nenhuma gravação das Bachianas é tão tocante. Destaque para a presença da espanhola Victória de Los Angeles, a eterna intérprete da Bachianas 5. Choros em comoventes versões (o 5 com Aline van Barentzen é uma referência) e o conjunto todo faz deste álbum a referência máxima da discografia de Villa-Lobos.

A obra para violão de Villa-Lobos é um dos momentos máximos de sua produção. A gravação integral da obra para violão solo de Villa-Lobos realizada por Fabio Zanon em 1996 continua sendo citada como referência máxima por toda a imprensa internacional especializada.

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A obra para piano solo de Villa Lobos compreende algumas das mais importantes e famosas obras do compositor, como as duas séries de A prole do bebê, Rudepoema, Cirandas, Guia Prático e muitas outras. Destacados intérpretes realizaram coletâneas brilhantes. Cito alguns: Roberto Szidon (o “must” na minha visão), Anna Stella Schic (amiga de Villa-Lobos, a primeira a realizar uma gravação integral), Nelson Freire, Marc-André Hamelin, Débora Halasz, entre muitos outros. Mas apenas Sonia Rubinsky gravou a produção completa de Villa-Lobos para piano, e o fez de forma excelente. O álbum de 8 CDs do selo Naxos de Sonia tocando Villa-Lobos torna-se, portanto, obrigatório.

Os 17 Quartetos de cordas de Villa-Lobos é um monumento muito mal conhecido na sua totalidade. Existe uma integral em CD com o Cuarteto Latinoamericano que é de uma qualidade impecável. O Quarteto Radamés Gnattali gravou uma integral em DVD em pontos históricos do Rio de Janeiro aliando uma execução refinada a um visual comovente. Dupla recomendação.

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A obra para sopros de Villa-Lobos abrange alguns Choros, o famoso Quinteto em forma de Choros (uma das obras máximas do autor), além de complicadíssimas obras como o Trio para oboé clarinete e fagote (1921) e o Duo para oboé e fagote (1957). Execução impecável dos membros do Quinteto Villa-Lobos e convidados.

Obras para violoncelo. Villa-Lobos foi violoncelista. Sua obra para este instrumento revela um trato muito pessoal do compositor. O violoncelista gaúcho Hugo Pilger e a pianista carioca Lúcia Barrenechea realizaram em 2013 um resgate maravilhoso da obra de Villa-Lobos para o instrumento em um CD duplo. Lembrando que Pilger junto a este CD realizou um importantíssimo livro, “Heitor Villa-Lobos – o violoncelo e seu idiomatismo”.

Falando de violoncelo, outro grande violoncelista brasileiro, Antonio Guerra Vicente, realizou em 2009 um CD duplo com o título Villa-Lobos e o violoncelo. Além de inúmeros tesouros como uma linda versão da Segunda Sonata para violoncelo e piano (com a pianista Francisca Aquino), dos Choros bis (junto à violinista Ludmila Vinecka) há a melhor gravação já realizada do Trio de cordas de 1945, uma das composições mais ousadas de Villa-Lobos, uma obra em para se conhecer a amplitude do gênio que se aventurou pelo universo do atonalismo. Execução magistral de Ludmila Vinecka ao violino, Glêsse Collet à viola e Antonio Guerra Vicente ao violoncelo.

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Uirapurú é uma das mais originais e contundentes obras de Villa-Lobos. Já foi gravada por Leopold Stokowsky e Eduardo Mata, grande maestro mexicano. Na importante serie que a OSESP grava da integral das Sinfonias de Villa-Lobos, para completar um dos CDs, aparece uma versão de referência deste ballet de 1917. Isaak Karabtchevsky, como sempre, comanda com elegância e brilho.

Todos os CDs citados podem ser encontrados on line ou mesmo em lojas físicas (até quando existirem) com uma certa facilidade. Apenas o belo CD do Guerra Vicente pode ser encomendado apenas através do email antonioguerravicente@gmail.com. Vale o esforço.

CD desaparecido

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Lamento muito que este CD tenha sumido completamente. Villa-Lobos em Paris. Regido por Gil Jardim (e com belos solos do soprano Claudia Riccitelli) temos as melhores versões já realizadas das mais experimentais obras de Villa-Lobos, o Noneto, Epigramas irônicos e sentimentais e o Quatour, obras para soprano, coro e instrumentos compostas na década de 1920, partituras de uma originalidade que fazem com que o compositor surpreenda os incautos que o achem conservador. Torço para que um dia este CD de 2005 seja “ressuscitado”.