Há 130 anos,em 1886, Arturo Toscanini (1867-1957), o grande regente de orquestra italiano, levantou pela primeira vez a batuta em sua vida no Rio de Janeiro, mais precisamente no dia 30 de junho daquele ano. Com 19 anos era um violoncelista brilhante e foi, a princípio, reprovado numa audição para fazer parte da orquestra do Teatro Alla Scalla de Milão. Com inúmeras dívidas aceitou o convite de fazer parte de uma orquestra que viria para a América do Sul apresentar algumas óperas no Brasil, Argentina e Uruguai. O empresário da Companhia, chamado Rossi, fez um acerto, para facilitar as coisas no nosso país, convidando para reger todas as récitas em São Paulo e no Rio de Janeiro o compositor brasileiro Leopoldo Miguez (1850-1902), que ao que parece era um maestro bem limitado. A companhia começou a turnê em São Paulo e a sofrível atuação de Miguez foi muito criticada, e de acordo com Robert Charles Marsh, importante biógrafo de Toscanini (Toscanini and the art of coducting – Collier Books) os solistas, o coro e a orquestra estavam numa crescente irritação com o maestro brasileiro. O clima azedou de vez quando a companhia chegou ao Rio, chegando ao ponto de todos se recusarem a atuar sob a regência de Miguez. Depois de algumas tentativas de outros maestros conduzirem a récita quem assumiu a regência foi um violoncelista da orquestra, Arturo Toscanini, que regeu a ópera Aida de Verdi de memória. O sucesso do jovem maestro foi enorme. No dia seguinte, por exemplo, o crítico Oscar Guanabarino, do jornal “O Paiz”, guardou palavras elogiosas para a regência de Arturo Toscanini: “Deu ele sobeja provas de habilitações, sangue frio, entusiasmo e vigor”. A Companhia que tinha recebido péssimas críticas em São Paulo foi elogiadíssima a partir da estreia de Toscanini que regeu todas as 18 récitas que ainda deveriam ser apresentadas no Rio. Em sua volta à Itália Arturo Toscanini voltou a tocar violoncelo, entrando na Orquestra do Teatro alla Scala, onde inclusive, na segunda estante de violoncelos, tocou na estreia mundial de Otello de Verdi, no início de 1887. Foram os efusivos elogios dos cantores que atuaram no Rio que possibilitou Toscanini a iniciar sua carreira de Maestro na Itália. Da ópera de Turim ao Teatro dal Verme de Milão e depois no Teatro alla Scala da mesma cidade sua carreira foi meteórica, tendo sido diretor musical tanto do Metropolitam de Nova York quanto do Colón de Buenos Aires fazendo históricas aparições nos Festivais de Bayreuth e Salzburg. Sua lendária memória, sua audição prodigiosa e seu senso fortíssimo de disciplina faz com que muitos se refiram a ele como o maior maestro de todos os tempos. Voltou ao Rio de Janeiro apenas uma vez, em 1940, já muito famoso e aclamado regendo a Orquestra da NBC, memorável orquestra que ele regeu até o fim de sua carreira em 1954, três anos antes de sua morte.
Um filme ofensivo com nossa história
Os fatos que realmente aconteceram não foram suficientemente interessantes para o cineasta Franco Zeffirelli. Em 1988, tentando contar o ocorrido no Teatro Dom Pedro II naquela noite, realizou uma fracassada produção chamada “O jovem Toscanini”. No início havia uma certa seriedade na empreitada e o escritor brasileiro Guilherme Figueiredo, irmão do ex-presidente João Baptista Figueiredo, foi convidado como roteirista e consultor histórico do filme. Quando Guilherme de Figueiredo viu as grosseiras distorções pensadas pelo diretor italiano se retirou da produção vindo até a processá-lo, com sucesso. As pretensas “liberdades poéticas” tomadas pelo diretor distorcem completamente a nossa história, particularmente no que se refere à abolição. Esta, segundo o filme, aconteceria por obra da cantora lírica Nadina Bulicioff, que interrompeu a récita de Aida (algo que não ocorreu) para fazer um discurso abolicionista. Aliás no filme ela é amante de Dom Pedro II, o que é outra inverdade, além do que ele nem sequer esteve no teatro naquela noite. O imperador é caracterizado como um tirano cruel, que oferece à cantora um punhado de escravos e um luxo descabido. Toscanini é retratado como alguém que luta pela abolição da escravatura, e apoia a interrupção da ópera. Conhecendo a crença artística do grande maestro pensamos mesmo que há “fantasia poética” em excesso no filme. Em “Flores, Votos e Balas” (Companhia das Letras), a socióloga Angela Alonso afirma que a intervenção da cantora se deu no dia 10 de agosto de 1886, 40 dias depois do debut de Toscanini e após o terceiro ato, não interrompendo a récita. Outro deslize é que o Rio de Janeiro é retratado como uma cidade de um país do caribe, e a música quando da chegada da Companhia de ópera ao Rio (a companhia chegou na realidade em Santos) é um tipo de rumba com típicas maracas. Aliás o Rio de Janeiro está totalmente ausente das filmagens. O teatro utilizado para as cenas de ópera é o teatro da cidade italiana de Bari (que foi destruído num incêndio alguns meses depois da filmagem), e as cenas de praia foram filmadas em Genova. O destaque na distribuição é a presença de Elizabeth Taylor no papel da diva Nadina Bulicoff. A despeito da marcante carreira da atriz não podemos deixar de ver que sua atuação beira o ridículo. Philippe Noiret, o famoso ator francês, dá os ares do “cruel” e “desumano” Dom Pedro II concebido pelo diretor italiano. Thomas Howell no papel de Toscanini é muito mais convincente regendo do que Nicolas Chagrin que incarna Leopoldo Miguez, o que até faz sentido. O que se salva mesmo é a deslumbrante voz do soprano americano Aprile Millo que é quem canta de fato as cenas da ópera. A estreia do filme foi catastrófica (vaiado no Festival de Cannes e no de Veneza), sendo que sua distribuição foi cancelada em muitos países.
Oportunidade perdida
O que mais me irritou no filme foi o tanto de inverdades a respeito de Dom Pedro II, da luta abolicionista e a completa ignorância a respeito de nossa música popular. Numa matéria do jornal Folha de São Paulo de 1995 (leia aqui) o jornalista Caio Túlio Costa acerta firme em suas observações: “Ao espectador resta a falsa impressão de que Nadina, insuflada pelo politiqueiro Toscanini pintado por Zeffirelli, precipitou a libertação. Isto sem falar dos escravos conversando em espanhol e cantando samba (em 1886!), quando o primeiro samba, “Pelo Telefone”, é da primeira década de 1900”. Penso realmente que quando há uso de referências históricas há uma obrigação de ser minimamente honesto, e não é o que se constata. O Debut de Toscanini em terras brasileiras, há 130 anos, é um evento histórico muito importante e dele podemos até ter orgulho. Este filme resulta no que eu chamo de oportunidade perdida. Quem sabe um dia tenhamos a bela história bem contada num filme sério.
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