Nascido há exatos 450 anos, em maio de 1567 (não se sabe a data precisa, a única certeza é que foi batizado no dia 15 daquele mês), o compositor italiano Claudio Monteverdi inventou tantas coisas que podemos arriscar chama-lo de “o maior inovador da história da música ocidental”. É evidente que toda esta série de inovações teriam pouca relevância se não estivessem a serviço de algumas das composições mais belas e geniais de que se tem notícia. Pelo fato de Monteverdi não ter escrito para instrumentos mais conhecidos, como o piano, ou formações instrumentais modernas, como uma orquestra sinfônica, seu nome não é citado espontaneamente pelo grande público como um dos maiores compositores da história, mas defendo que Monteverdi é um criador musical da mesma estatura de Bach, Mozart ou Beethoven. Monteverdi foi o primeiro autor de óperas de alta qualidade, e a prova disso é que “La favola d’Orfeo” de 1607 é a ópera mais antiga que é montada com frequência nos dias de hoje. Não só o enorme número de inovações, sobre as quais discorrerei neste texto, são em si uma novidade, mas é interessante notarmos que ao publicar suas primeiras obras quando tinha apenas 15 anos de idade, isso em 1582, torna Monteverdi o primeiro prodígio musical da história. Exemplo raro, dominou duas linguagens musicais antagônicas ao mesmo tempo e isso até o final da vida: a música sacra polifônica (do estilo de Palestrina) e a música nova que emanou das ideias de um grupo de compositores que chamamos de “Camerata Fiorentina” (do qual Monteverdi não fez parte), aquele que “inventou” a ópera. Se foi em Florença que as novidades musicais mais modernas daquela época (final do século XVI) foram inventadas, foi através de Monteverdi, especialmente na cidade de Mântua, que elas foram usadas a serviço de obras primas. Os compositores da Camerata Fiorentina como Caccini, Peri e Galilei, eram inteligentes e espertos mas Monteverdi, além destas mesmas qualidades, era o único em seu meio a ser um autêntico gênio.
Inovações
Talvez a mais significativa inovação de Monteverdi seja algo que é corriqueiro hoje em dia, mas que era algo totalmente impensado na época do compositor: especificar qual instrumento deveria ser utilizado num determinado trecho. Monteverdi é, portanto, o mais importante precursor da orquestração. Ele o faz, em sua ópera “Orfeo” de 1607, de duas maneiras distintas: ou em um prefácio diz quais instrumentos devem ser usados ou especifica o nome do instrumento numa determinada linha (pentagrama). Na cena em que Orfeu tenta comover as fúrias para chegar ao reino dos mortos para reaver sua amante Euridice (“Possente spirto”, terceiro ato), pela primeira vez na história, o nome dos instrumentos desejados está bem claro em cada pentagrama como mostra esta edição da época do compositor:
Monteverdi, que dominava diversos instrumentos de cordas, coloca pela primeira vez para um conjunto de instrumentos de arco a instrução de “pizzicato” (as cordas beliscadas com os dedos). De maneira bem didática, na partitura de “Combatimento de Tancredo e Clorinda” (do VIII livro de madrigais, de 1638) vem escrito num certo momento: “Aqui se se dispensa o arco e se puxam as cordas com dois dedos”. Em seguida escreve: “Aqui se pega o arco de volta”. Na mesma obra Monteverdi cria o “tremolo”, notas repetidas de forma bem rápida, para descrever a batalha entre os dois personagens. Nesta obra também vemos as mais antigas instruções de dinâmicas musicais: Forte e Piano. Vejam um fac-símile da edição da época do autor:
Além disso, ao reutilizar certos trechos musicais em sua ópera “Orfeo” (mais uma vez) para simbolizar o mundo dos mortais pode-se dizer que ele é o precursor do “leitmotiv”, técnica que Wagner usará com frequência 200 anos depois.
Novidades harmônicas
Falando de coisas mais técnicas, que envolvem conhecimentos musicais, Monteverdi foi o primeiro compositor a usar de forma constante um dos acordes mais usuais na música ocidental, o acorde de sétima de dominante. Também em suas obras temos o mais antigo uso de uma sequência harmônica conhecida como “cadência perfeita”, que definem bem claramente a tonalidade de uma música. Ele realmente fez a transição musical da renascença para o barroco, do modalismo para o tonalismo. Podemos situá-lo numa posição histórica análoga à do pintor Caravaggio, que com o “claro-escuro” faz a pintura ingressar numa nova estética.
Óperas perdidas e esquecimento
Das geniais óperas de Monteverdi conhecemos a primeira delas “La favola d’Orfeo” (Mântua, 1607) e as duas últimas: “Il ritorno d’Ulisse in pátria” (Veneza, 1640) e “L’incoronazione di Poppea” (Veneza, 1642), duas obras em que há dúvida de serem integralmente da autoria do autor. Uma das maiores tragédias da história da música reside no fato de que ao menos seis óperas de sua autoria (quatro para Mântua e duas para Veneza) estarem irremediavelmente perdidas pois suas partituras, não editadas, foram destruídas principalmente por causa de guerras, ainda no século XVII. Se o refinado público delineava um meio ideal de trabalho para “Orfeo”, inclusive com todos os elevados custos sendo pagos pelos nobres de Mântua, as duas últimas denotam um ambiente bem diferente: foram escritas para teatros que viviam da venda de ingressos, e para um público que buscava apenas um divertimento. Por isso são obras extremamente longas e desiguais, mas que apresentam momentos geniais, o que justifica serem montadas com frequência.
Por mais de 300 anos a música de Monteverdi permaneceu esquecida e somente no século XX, através do pioneirismo de Fracesco Malipiero na Itália e Nadia Boulanger na França, que a sua obra, aos poucos, conquistou um grande público. O maestro Nikolaus Harnoncourt foi de uma importância enorme ao revelar para o público moderno, na década de 1960, o som dos instrumentos usados por Monteverdi em suas óperas e madrigais com seu grupo vienense “Concentus Musicus”. Seja na música sacra (ele foi por décadas o responsável pela música na Basílica de San Marco de Veneza), através principalmente do “Vespro della Beata Vergine”, de 1610, a mais importante obra sacra do século XVII, na música vocal, através dos 8 livros de Madrigais, ou nas óperas, a produção de Monteverdi permanece como uma das maiores glórias das artes em todos os tempos.
Monteverdi no Brasil
Não posso deixar de citar o nome de alguns músicos brasileiros que fizeram realizações marcantes no Brasil, divulgando algumas das obras máximas do mestre. Primeiramente lembro de Roberto Schnorrenberg, o falecido maestro paulista, que realizou em 1968 em São Paulo a primeira audição brasileira do ” Vespro della Beata Vergine”. Esta mesma obra foi regida de maneira brilhante também pelo maestro Abel Rocha diversas vezes, com diversos corais e grupos instrumentais. É importante lembrar do importante empenho do cravista carioca Marcelo Fagerlande, que coordenou a primeira execução brasileira da ópera “Orfeo” (Sala Cecília Meireles – 1998. Theatro Municipal do Rio – 2007). A cantora curitibana Marília Vargas é outro expoente no que se refere a Monteverdi, no país e no exterior: participou da histórica montagem de “Orfeo” no Liceu de Barcelona sob a regência de Jordi Savall em 2002 e inclui diversas páginas de Monteverdi em seus recitais (até em insólitas parcerias com André Mehmari). E não posso deixar de lembrar da excepcional competência da Camerata Antiqua de Curitiba, com a qual montei o Sétimo livro de Madrigais (São Paulo 1987) e o Oitavo Livro (Curitiba 2001).
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