A cidade do Rio de Janeiro já foi, a nível mundial, um centro musical de grande importância, especialmente no que se refere ao universo operístico. No magnífico livro de Ayres de Andrade “Francisco Manuel da Silva e seu tempo” (Edições tempo brasileiro LTDA) vemos que mesmo na época anterior à independência a atividade musical na antiga capital do país era muito intensa. Em muitos romances de Machado de Assis podemos perceber a importância deste tipo de manifestação no século XIX sendo que em Don Casmurro o escritor chega a imaginar a história a ser narrada como um libreto de ópera (uma frase que não me sai da cabeça num conto de Machado: “O enfermeiro, pobre clarineta de teatro……”). Depois de décadas de decadência alguns fatos históricos passados na capital fluminense nos parece um verdadeiro conto de fadas. Nos últimos anos os assuntos relacionados à cultura encontraram o mesmo destino atroz de outras áreas na desastrada gestão do governador Sergio Cabral e do prefeito Eduardo Paes, e falar da dupla estreia brasileira da última ópera de Verdi, Falstaff, parece mesmo algo impossível de acontecer. A triste situação atual daquele que já foi o principal teatro de ópera do Brasil, o Theatro Municipal do Rio de Janeiro, é a prova cabal de que o que narrarei é algo passado. Não acontecerá nunca mais.
Falstaff, a última ópera de Verdi
Giuseppe Verdi (1813-1901), cujo bicentenário do nascimento comemora-se no próximo dia 10 de outubro, escreveu sua última ópera quando tinha 79 anos de idade. Assim como sua ópera anterior, Ottelo, o libreto foi escrito pelo compositor Arrigo Boito (1842-1918), e mais uma vez basearam-se em Shakespeare, sendo que a última obra do mestre foi baseada na comédia “As alegres comadres de Windsor”. Verdi surpreendeu a todos com o vigor e com a novidade desta obra que parece mesmo abrir caminho para novos rumos absolutamente inesperados. O virtuosismo da escrita instrumental e a riqueza contrapontística fazem desta obra um desafio para músicos até mesmo nos dias de hoje. A fuga final da obra com o texto “Tudo no mundo é uma brincadeira” parece mesmo a despedida bem humorada de um ancião que era então o mais popular compositor de óperas do mundo. A estreia aconteceu em 9 de fevereiro de 1893 no Teatro ala Scala de Milão e foi reverenciada como uma partitura genial se bem que soou estranha para muitos.
A dupla estreia brasileira
Uma das coisas que mais nos impressiona na estreia brasileira é a data em que ela ocorreu: 29 de julho de 1893, apenas pouco mais do que cinco meses da estreia mundial em Milão. Este dado sozinho já seria algo a nos chamar a atenção, mas ainda mais excepcional é que a estreia brasileira foi dupla: na mesma hora, no mesmo dia, na mesma cidade esta complexa partitura que era tão recente foi executada em dois teatros diferentes. E o mais notável são alguns nomes envolvidos nestas montagens. Na do Theatro Lyrico (já destruído) o maestro encarregado de dirigir a complexa partitura era Luigi Mancinelli (1848-1921) o mesmo maestro que regeria a estreia da obra no Metropolitan opera de Nova York no ano seguinte. Vale a pena ressaltar que nesta produção atuou um dos maiores barítonos da época cantando o papel principal: Antonio Scotti. Seria difícil escolher em qual teatro ir pois no Theatro São Pedro (que situava-se onde hoje é o Teatro João Caetano, na Praça Tiradentes) quem regia o espetáculo era um outro maestro excepcional: Cleofonte Campanini (1860-1919), o mesmo maestro que regeria a estreia mundial da ópera Madama Butterfly de Puccini em 1904. Conhecendo-se a complexidade da escrita da obra de Verdi e o grau de exigência destes dois maestros fica claro que atuaram ao mesmo tempo duas orquestras excelentes, pois esta é uma partitura das mais temidas já escritas até aquela época. Uma curiosidade: A intérprete de Alice no Teatro Lyrico, Eva Tetrazzini, viria quatro anos depois a ser a esposa do maestro que atuou no Theatro São Pedro, Campanini. A riqueza de detalhes desta dupla estreia nos atiça a curiosidade do que se assistiu naquela noite e qual foi a reação do público, que com certeza não compreendeu totalmente esta obra cheia de novidades.
O Rio de Janeiro: uma cidade que que foi bem atualizada
Esta estreia dupla do Falstaff nos lembra que a antiga capital federal era muito pujante do ponto de vista cultural, e bastante atualizada. Mesmo as complexas óperas de Richard Strauss (1864-1949) foram montadas com pequena defasagem de tempo: Salomé que foi estrada em Dresden em 1905 foi levada à cena no Rio em 1920, e a desafiante Elektra estreada também em Dresden em 1910 foi encenada no Rio em 1923. Isto não é desmentido pelo livro “O círculo Velloso-Guerra e Darius Milhaud no Brasil” (editora Reler) que descreve a rapidez com que as obras dos compositores franceses importantes da época eram apresentadas ao publico carioca nos primeiros anos do século XX. Foi neste cenário tão pujante que nasceu o maior gênio musical brasileiro, Heitor Villa-Lobos (1887-1959). Fica a pergunta: o que nosso decadente ambiente cultural pode gerar? Certamente muito pouco.
Vídeo
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