Num momento em que se discute se a frase “Deus seja louvado” deve estar ou não nas cédulas de dinheiro, acho pertinente falar sobre o ateísmo. Apesar de malfadados ladrões do dinheiro público defenderem a permanência da frase, e se confessarem religiosos, a maioria das pessoas rotulam alguém que não acredita em Deus como alguém que é pessimista e sem nenhum tipo de fé. Ateus são mesmo acusados de serem pessoas sem escrúpulos, pois sabem que não arderão nas chamas do inferno (se o mesmo existir) por seus delitos. Minha defesa a um pensamento ateísta cheio de fé e de atitudes positivas se concentram na figura de um dos mais importantes compositores do século XX, Bela Bartók (1881-1945). Desde jovem Bartók defendia uma ideia de fé que ficou reforçada quando, no fim da primeira década do século XX, fez uma extensa pesquisa “in loco” das fontes originais da música camponesa do leste europeu. Foi ele quem deu início à Músico-Etnologia, e sua pesquisa musical deixou marcas profundas em sua obra, tornando-o um dos mais originais criadores musicais do século passado. A sua pesquisa entre os humildes camponeses deixou marca profunda também em sua convicção filosófica. Em carta à sua namorada, a violinista Stefi Geyer, ele afirma que Deus é uma invenção do homem, que Deus não criou o homem à sua semelhança, mas foi o Homem quem criou Deus à sua imagem e semelhança. Mas o amor que o compositor tinha pela natureza fica bem clara numa frase marcante: “Devemos ter um grande desejo de viver , e trazer dentro de nós um grande interesse ao universo que nos cerca”. Sua paixão pelos pássaros, pelos insetos, pelos animais em geral e pelas árvores fez com que ele tivesse o hábito de sair à noite em meio a bosques e florestas para escutar os sons autênticos da natureza. Seus andamentos lentos, chamados de “música noturna”, são prova do quanto isto influenciou sua obra.
A Cantata profana
Em setembro de 1930 Bartók concluiu a sua composição vocal mais importante: a Cantata Profana, para solistas, coro duplo e grande orquestra. Seu texto é uma narrativa fantástica captada entre os camponeses da Romênia. Cumpre explicar que o compositor húngaro foi muito interessado em diversas fontes folclóricas, não só da Hungria, mas também da Bulgária da Eslováquia e da Romênia. Bartók traduziu o texto para o húngaro, e fez nesta obra a sua mais clara declaração de amor à liberdade e à natureza. O texto da obra começa da seguinte maneira:
Era uma vez um velho homem
Que estimava seus nove filhos
Belos e robustos
Fruto de seu próprio corpo.
Nada do labor lhes ensinou
Nem comércio tampouco agricultura
Nem a arar, tampouco a plantar
Nada de domar cavalos
Nem do manuseio do gado.
O que os ensinou foi o seguinte:
A vagar por montes e vales
Caçando os nobres cervos.
A música começa suave, bem sútil, e o coro usa palavras em húngaro que parecem ao mesmo tempo reproduzir o farfalhar das folhas e o ruído das fontes.
A música se torna subitamente agitada. A caçada é descrita. Eis o texto:
Pela floresta rumando, ei-ah!
Unidos a caçar,ei!
Todos os nove filhos e robustos irmãos
Por entre a mata perambulando caçavam.
Mais longe ainda adentravam
Eles continuavam a caçar.
Subitamente a música se torna misteriosa.Glissandos nas harpas e sons especiai do coro colaboram na mudança do clima. Algo de excepcional acontece:
Profunda jazia uma ponte assombrada
Maravilhosos cervos a haviam cruzado
Desatentos eles seguiram
Sem saber seus rumos
Perdidos nas sombras da floresta,
Todos transformados em cervos
Cervos esbeltos, encantados em fila
Pela floresta.
Os nove filhos são magicamente transformados em animais, os mesmos animais que eles caçavam. O pai, desesperado, procura armado, os seus filhos. Ele vê um grupo de 9 cervos, e reconhece o seu filho mais velho como o líder do grupo. Seu filho lhe diz:
“Queridíssimo, amado pai,
Não atire nas suas crianças
Pois com certeza nossas galhadas
Deverão vos furar e vos espetar.”
O pai, desesperado conclama seus filhos a voltarem:
“Oh, meus queridíssimos entes amados,
Oh minhas crianças queridas,
Venham, oh venham
E voltem para casa agora,
Venham agora,
Sua doce mãe vos espera.
Venham comigo,
Minhas crianças,
Sua mãe está esperando, sozinha,
Amando, sofrendo,
As lanternas estão acesas,
As mesas estão prontas,
Os copos estão cheios.
Os olhos de sua mãe também.”
A resposta do filho vem imediatamente:
“Queridíssimo afetuoso pai
Volte, oh volte para casa agora
Para nossa solitária, querida, doce mãe
Mas nós não podemos ir!
Nós nunca poderemos voltar
Por que nossas galhadas
Não podem mais passar por sua porta de entrada
Somente rumar pelos bosques da floresta
Nossas bocas não mais
Bebem de copos
Mas somente das frescas fontes”.
A linguagem que Bartók usa na parte dos solistas (o filho um tenor e o pai um barítono) é uma imitação da maneira camponesa de canto. A linha do tenor é excepcionalmente aguda, parecendo às vezes uma emissão especial típica do leste europeu. Na secção final o coro recorda a fábula, e o ponto mais comovente da partitura é quando o tenor, com as palavras “Mas somente das frescas fontes” faz um melisma utilizando escalas folclóricas e a obra termina numa profunda paz.
Bartók, nesta sua obra prima, defende alguns conceitos que prezava de forma contundente. Em primeiro lugar a transformação, que não admite retorno:
“Nós nunca poderemos voltar
Por que nossas galhadas
Não podem mais passar por sua porta de entrada”
O amor pela natureza também está presente, especialmente ao vermos aqueles que matavam os nobres animais, serem transformados nas próprias presas. A insistência com a frase que reafirma o amor às fontes naturais de água, no final da partitura, mostra como esta frase é a chave para a compreensão da obra.
Uma obra complexa e pouco conhecida
A Cantata Profana é uma obra bastante complexa para ser executada, e isto explica sua pouca popularidade. Trechos bitonais, e mesmo clusters (cachos) de notas no coro estão entre os enormes desafios a serem vencidos. As partes solistas, especialmente do tenor, são extremamente complicadas, e o idioma húngaro, indispensável, são outros fatores que explicam a pouca frequência com que a obra é executada. Aqui no Brasil, faço aqui homenagem ao maestro Isaac Karabtchevsky, que com grande esforço executou a obra em São Paulo, no centenário do nascimento do compositor, em 1981.Entre as gravações da obra destacam-se três versões excelentes: uma feita na Hungria, nos anos 60 regida por Janos Ferencsik tendo como solistas Jozsef Reti (Tenor) e Andras Farago (Barítono) lançado pelo selo Hungaroton. Uma, bem mais recente, com o maestro e compositor francês Pierre Boulez à frente da Orquestra Sinfônica de Chicago, e do excelente coro da Sinfônica de Chicago, tendo como solistas John Aler (tenor) e John Tomlison (barítono), pelo selo Deutsche Grammophon. Minha gravação favorita no entanto é a terceira que pretendo citar, a última gravação realizada por um dos maiores maestros do século XX, Georg Solti, lançada pelo selo Decca. Gravada em 1997, alguns meses antes da morte do grande maestro húngaro,ela contou com a participação de um dos melhores corais da atualidade, o Coro Da Radio Húngara. A mais destacada orquestra húngara, a Orquestra do Festival de Budapest, participa também da gravação, e os solistas Tamas Daroczy (tenor) e Alexandru Agache (barítono), os dois húngaros , parecem mesmo ter um comprometimento com o texto nunca visto antes .O melisma final do tenor, sobre a frase “Mas somente das frescas fontes” está executado de uma forma bem “autêntica”, quase como vinda das “frescas fontes”.
A Cantata Profana permanece como uma das provas mais contundentes da crença de um ateu. Não na crença em que a maioria compactua. Mas numa crença forte quanto à ética e quanto ao amor à natureza.
A versão de Ferencsik na íntegra (3 partes automáticas)
Para quem compreende húngaro, a comovente leitura do texto pelo próprio Bela Bartók