O repertório apresentado nos programas de música clássica tende a ser uma eterna repetição dos itens muitas vezes executados. Quem é o culpado disso? O público? Os organizadores dos concertos? Tenho uma tendência a acreditar que a segunda alternativa é a mais verdadeira. Cito um exemplo que me parece bem apropriado. Há alguns anos assisti uma entrevista no programa “Roda Viva”, na TV cultura de São Paulo, com o grande maestro Zubin Mehta.
Nesta entrevista ele contou que estava vindo ao Brasil com a Filarmônica de Viena em 1996, quando soube da morte do maestro Eleazar de Carvalho, com quem tinha estudado nos cursos de verão em Tanglewood, nos Estados Unidos. Zubin Mehta estudou com o maestro brasileiro, entre outras obras, a Sinfonia de Câmera opus 9 de Arnold Schoenberg, composição de 1909. A ideia do maestro indiano era de reger esta obra na excursão brasileira como uma espécie de homenagem a seu mestre brasileiro. Contou ele no programa “Roda Viva” que a diretora da entidade que trazia a orquestra se opôs a esta escolha, e pediu se ele poderia substitui-la pela “manjadíssima” Sinfonia do Novo Mundo de Dvorák. Disse ele que depois de muitas conversas desistiu de discutir com a referida senhora, e acabou atendendo ao seu pedido. Não tenho nada contra a última sinfonia de Dvorák, mas esta senhora impediu que o público brasileiro ouvisse uma obra poucas vezes executada entre nós, para colocar no lugar algo que ela acreditava ser uma garantia de casa cheia. Este exemplo é bem emblemático do que se passa na cabeça de quem organiza a programação de concertos. Isso leva o público a uma atitude de ir a um concerto apenas para se divertir, e não de aprender. A ausência de novidades é, em minha opinião, uma das maiores responsáveis pela pouca renovação do público. Este deve ser desafiado, e um diálogo construtivo deve ser estabelecido.
Vícios do repertório
Vamos voltar à Sinfonia do Novo Mundo, a Sinfonia Nº 9 do compositor tcheco Antonín Dvorák. Não discuto a genialidade desta composição, mas é escandaloso que este autor seja lembrado sempre por apenas três ou quatro obras (Concerto de Violoncelo, Danças Eslavas…) em meio a dezenas de obras primas totalmente desconhecidas. Quem já ouviu dele, por exemplo, o “Stabat Mater” para solistas, coro e orquestra? Ou quem já ouviu suas últimas composições orquestrais, quatro magníficos poemas sinfônicos? Culpa do público? Não. Culpa da falta de formação de quem monta uma temporada de concertos. Há um medo tolo de que o público não vai entender uma determinada obra, mas quem não a programa é quem não a entende, ou simplesmente nem a conhece.
Referi-me anteriormente a um compositor popular em termos de repertório clássico, mas a coisa fica mais grave quando nos movemos no complicado terreno da música moderna. Moderno??? As Três peças para orquestra opus 6 de Alban Berg, por exemplo, foram compostas há cem anos. São obras completamente desconhecidas entre nós. Há aí um caso de modernidade ou de incompetência de quem organiza o repertório a ser apresentado? As coisas neste aspecto são muito pior entre nós do que na Europa ou nos Estados Unidos. Um músico de orquestra em Chicago ou em Viena exibe uma enorme competência lidando com obras de compositores ativos no final do século XX como Gyorgi Ligeti ou de Luciano Berio. Este músico de orquestra sabe que a qualquer momento obras destes compositores serão apresentadas, pois os organizadores, maestros e administradores, possuem uma formação que faz com que se entenda a necessidade deste tipo de obra ser executada. Aqui entre nós a coisa é completamente diferente. O músico sabe que nunca será exigido dele algo diferente, pois o “algo diferente”, na maioria das vezes, é desconhecido daquele que “pensa” pela programação.
Um exemplo revelador
Em 1982 participei (era maestro do coro) da estreia brasileira da ópera Wozzeck de Alban Berg no Teatro Municipal de São Paulo. Nas seis récitas o teatro estava completamente lotado, e podíamos notar que o público era um pouco diferente do tradicional público de ópera. Pessoas mais ligadas a teatro, a cinema, além de muitos aficionados do gênero lírico, muitos deles “torcendo contra”. O resultado foi um êxito sem precedentes. Quem poderia prever que uma obra atonal faria o público aplaudir por muitos minutos? Lembro que numa das récitas o elenco todo teve que voltar à cena seis vezes. Quem teve a ideia de apresenta-la, e quem regeu as récitas, foi o maestro Isaac Karabtchevsky, um dos poucos maestros em atividade no Brasil que possuem um raciocínio que considera que o público deve ser desafiado. Este exemplo para mim é o suficiente para que a “mesmice” não seja culpa do público. Se o público dá sinais de limitação, esta na realidade é um reflexo da limitação de quem faz a programação. O público não é tão burro quanto se pensa.
Inteligência americana pode ter colaborado com governo brasileiro em casos de censura no Brasil
Lula encontra brecha na catástrofe gaúcha e mira nas eleições de 2026
Barroso adota “política do pensamento” e reclama de liberdade de expressão na internet
Paulo Pimenta: O Salvador Apolítico das Enchentes no RS