Existe na cidade de Siena, em seu “Palazzo Pubblico”, um conjunto de afrescos pintados por Ambrogio Lorenzetti entre 1338 e 1339 com o título de “Efeitos do Bom Governo na Cidade e no Campo” e “Alegoria do Mau Governo e seus Efeitos na Cidade e no Campo”. Este conjunto de pinturas foi uma encomenda de um grupo de nove ricos comerciantes que se responsabilizavam pela administração da República de Siena, república que durou mais de quatro séculos e que foi sepultada por uma invasão espanhola em 1555. Não há dúvida de que estes belíssimos afrescos foram encomendados com objetivos de propaganda política, e demonstram uma certa ideia maniqueísta. Em termos de arte nem sempre as coisas funcionam de forma tão linear, e constatamos, no caso do Brasil, que a produção artística apresentou obras extremamente importantes na música, na literatura, na pintura e no cinema, durante um dos períodos mais sombrios de nossa história, a ditadura militar, que durou de 1964 até 1985.
A repressão e as artes
A censura foi uma das armas mais repulsivas do regime militar. Quando íamos ao cinema aparecia na tela uma imensa autorização oficial da exibição daquele determinado filme assinado sempre por uma tal de Solange Teixeira Hernandes. Muitos filmes, quando liberados, eram exibidos com inúmeros cortes. Mesmo um filme onírico como o genial “Roma” de Federico Fellini teve cenas cortadas por algum censor em sua primeira exibição brasileira em 1972 (governo de Emílio Garrastazu Médici). Mas, contradizendo a lógica dos afrescos de Siena, esta amarga repressão acabou gerando frutos muito interessantes do ponto de vista artístico. Prova disso é a produção do cineasta baiano Glauber Rocha, que era considerado um elemento subversivo pelos governantes, mas que conseguiu na época produzir dois filmes premiados no Festival de Cannes: “Terra em transe” (1967) e “O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro” (1968). Depois do Ato Institucional Nº 5 (dezembro de 1968) as coisas pioraram muito por aqui, o que levou o cineasta a se exilar, mas percebemos, especialmente em “Terra em transe”, que ironiza um governo autocrático, que a repressão inspirou o artista. Macunaíma (1969), dirigido por Joaquim Pedro de Andrade, já teve que enfrentar o período mais duro, e foi sumariamente proibido. A censura chegou a ridículos grotescos quando, por exemplo, em 1976, o ministro da justiça do presidente Ernesto Geisel, Armando Falcão (de “saudosa” memória), proibiu a exibição do Ballet “O lago dos cisnes” de Tchaikovsky nas televisões brasileiras porque seria dançado por uma companhia russa, o Bolshoi. Os cisnes comunistas certamente representavam uma ameaça…
A música popular brasileira no período da ditadura
Podemos dizer que a música popular brasileira teve uma fase áurea durante o regime militar. Se bem que alguns expoentes da área, como Roberto Carlos, flertavam com os militares, o que de melhor foi produzido por aqui na música popular foi daqueles autores que contestavam o regime. Nomes que até hoje marcam a mais alta qualidade da MPB, como Chico Buarque, Caetano Veloso, Gilberto Gil e Edu Lobo, produziram suas obras primas em corajosas manifestações de enfrentamento aos instrumentos de repressão. Tomando a produção de um deles, Chico Buarque, encontramos não apenas composições musicais muito interessantes e inovadoras, mas poemas de altíssima qualidade. “Construção”, composta por Chico Buarque em 1971, num período negro de nossa história, tem um poema, também escrito pelo compositor, de uma qualidade literária indiscutível, com uma mensagem incrivelmente atual. Do mesmo autor, outra obra prima é “Roda Viva” de 1967, que era utilizada numa peça homônima de teatro, peça esta que teve suas apresentações interrompidas pela polícia, sendo que diversos elementos do elenco foram levados para a prisão. É neste período também que surge a Tropicália, movimento que consolidou a fama de Caetano Veloso, Gilberto Gil e Tom Zé. Harmonias inesperadas e textos que se aproximavam do concretismo, fizeram das obras desta corrente ícones aceitos pelo público como uma mensagem contestatória. Para mim não há dúvida: a MPB teve seu auge no período da mais hedionda repressão. Um bom efeito de um mau governo.
A música clássica no período da ditadura: vanguarda e experimentalismo
Alguns compositores de música clássica também tiveram uma atitude de desafio às normas rígidas do regime militar. O compositor Aylton Escobar, por exemplo, escolheu poemas de Ho Chi Min (revolucionário comunista do Vietnam) para sua obra “Poemas do cárcere”, que ganhou o primeiro prêmio do I Festival de Música da Guanabara em 1969. Mas além desta atrevida escolha diversos compositores brasileiros de música de concerto enveredaram por um caminho altamente experimental nas décadas de 60 e 70. Os nomes que me vêm mais à mente são os de Marlos Nobre, Almeida Prado e Lindembergue Cardoso. De Marlos Nobre suas obras orquestrais Mosaico, de 1970 e In Memorian, de 1976, nos fazem pensar que no momento mais restritivo de nossas liberdades uma escrita que tem suas semelhanças com o “sonorismo” polonês podem ter pontos de contato entre a vanguarda de um país que desafiava o realismo socialista de um regime comunista e uma vanguarda brasileira que desafiava a ditadura em nosso país. Lembro-me de uma conversa com o compositor baiano Lindembergue Cardoso a respeito de sua magnífica obra “Procissão das Carpideiras” de 1969, escrita de forma surpreendentemente moderna, e ele me afirmou que nela existia um eco da ousadia e da contestação de seu conterrâneo Glauber Rocha. Esta afirmação do compositor ficou na minha mente até hoje. Este passado musical brasileiro está quase que totalmente esquecido nos dias de hoje, mas vale a pena lembrar que a primeira vez que o compositor polonês Krystof Penderecki regeu em São Paulo, no início da década de 80, ele ficou admirado com a facilidade com que a orquestra do Theatro Municipal de São Paulo lidava com peculiaridades da escrita moderna de algumas de suas mais ousadas obras. Nada surpreendente: nesta época a referida orquestra estava acostumada a tocar um repertório concebido de forma ousada por nossos compositores. Fica a pergunta: a ousadia dos compositores de música clássica no Brasil nos anos de chumbo era uma atitude desafiadora? Assim como o compositor Penderecki não vê mais lógica em escrever obras de vanguarda no momento em que a Polônia é uma democracia os compositores brasileiros não veem mais lógica em serem contestadores? Uma coisa é inegável: tanto na música clássica como na música popular perdeu-se a fagulha da contestação. Esta contestação gerou, sem dúvidas, muitas obras primas.
Vídeos e áudios relacionados com o texto:
Terra em Transe de Glauber Rocha. Filme de 1967. Obra prima de nosso cinema. Uma severa crítica ao regime militar.
Construção de Chico Buarque. Concepção musical que revela a monotonia e a pobreza de um trabalhador da construção civil. Um arranjo maravilhoso, sobretudo com elementos dissonantes nos metais. Uma obra prima !!!
Procissão das Carpideiras do baiano Lindembergue Cardoso. Ousadia e beleza.
In Memoriam de Marlos Nobre. Obra altamente inspirada
Parte I
Parte II
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